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Dança do Labirinto: Uma imersão sensorial

A exposição Dança do Labirinto, com o artista Ricardo Jacinto (n. 1975), patente na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, apresenta-se como uma proposta de reflexão sobre a instalação enquanto forma de arte. Sob a curadoria de Nuno Crespo, esta mostra convida o visitante a embarcar numa viagem sensorial que desafia a perceção através do que se poderia afirmar ser uma única instalação[1] que combina som e corpo no tempo e no espaço, desafiando o espectador a mergulhar numa experiência estética ímpar.

Jacinto tem construído, ao longo da sua carreira, uma narrativa artística que transporta o espectador através de paisagens sonoras imersivas, explorando a relação dinâmica da matéria e formulando experiências sensoriais que expandem a perceção humana para além do signo visual. Em Dança do Labirinto, o artista propõe uma investigação sobre como o som pode ser um elemento estruturante na apreciação, sugerindo um labirinto físico e mental.

A prática de Jacinto revela uma preocupação pela escuta ativa do espectador, exigindo e desafiando-o a uma perceção das nuances que, muitas vezes, passam despercebidas ou são entendidas como “acasos” ou “singularidades”. Esta pode ser – e será certamente – uma nova forma de interação, onde o espectador se torna parte integrante da experiência estética ativando-a no momento do seu usufruto e portando a capacidade de fragmentar conceitos e de os recombinar.[2]

Nesta senda, é possível atribuir ao espectador a faculdade integrante sem a qual a obra não ficaria completa – isto se alguma vez o for. Segundo David Hume (1711-1776), “a principal faculdade da mente é a imaginação”[3], o que torna a sua visão útil à interpretação da obra de Jacinto e a sua teoria da Associação das Ideias a esta mostra. Tal como na exposição, esta análise transtemporal permite que ideias aparentemente desconexas criem uma suspensão do tempo, representando em si o signo sobre a qual é possível elaborar uma análise teórica contemporânea. Deste modo, é através da linguagem que é possível entender a Dança no Labirinto, ilustrando o processo cognitivo inconsciente que se encontra intimamente ligado à linguagem e à criatividade. Isto é, a linguagem permite a construção de uma infinidade de ideias únicas onde cada associação é um pequeno ato criativo que permite um acumular desses atos, promovendo uma construção mais complexa. A análise de Hume é pertinente por determinar o primeiro plano da imaginação como o principal mecanismo da mente.

Vejamos: ao entrar no espaço expositivo, somos imediatamente interpelados pela obra In a rear room (2011-2024), onde um piano, equipado com um disklavier, desenha e compõe a base para uma trama criada através do som, funcionando como um mapa do que se apresenta. O particular nesta articulação encontra-se na composição entre In a rear room e Cabeças de vento (1998-2024), obra composta por vidros, espelhos, ventoinhas e um sistema de amplificação sonoro que invade a perceção sensorial do espectador. É particular que este sistema proporcione novos e diferentes sons não premeditados, propostos ao acaso, para a interação da matéria sobre os vários elementos que a compõem. Aqui os vidros e espelhos encontram-se equipados com captadores de som que, através da amplificação das ventoinhas incidentes sobre um microfone, criam uma trepidação sobre estes elementos, concebendo novos e diferentes sons que se perpetuam como um eco. O primeiro destes sons é impossível de alcançar, exceto através da memória ou da imaginação.

Hume é significativo para esta discussão pelo modo como enfatiza o papel da imaginação na formação das ideias a partir de sensações. Segundo o filósofo, existem dois métodos para a formação das ideias: a partir da memória ou da imaginação. A diferença entre ambos está em “o processo de linguagem se encontrar localizado no domínio da imaginação” que é “o motor do pensamento e não da linguagem”.[4] Aqui, é possível entender que tal processo criativo transpõe a própria exposição. Notemos a obra 33 partes (2016), composta por 333 fotografias que representam um violoncelo completamente destruído – ou, desconstruído. Ora, o violoncelo, para além da sua disformidade, consolida-se como um signo perpetuador da sua obra, mas também um desfilar do que se adivinha. Signo este que constrói, através da exposição, uma suspensão do tempo. Este instrumento é, também, apresentado em 37 segundos, uma obra em vídeo que nos dá conta da fatalidade à qual este instrumento foi sujeito através do encontro fortuito entre o camião de terraplanagem e o

violoncelo, levando a obra ao destino que observamos em 33 partes e cuja ação não finda neste ponto.

Na inauguração, Ricardo Jacinto apresentou ao visitante uma performance que, através de um violoncelo, ativou as obras e criou uma paisagem sonora, envolvendo o visitante na experiência de um sublime poderoso e incontrolável que o permitisse transcender na própria capacidade de compreensão ou controlo. São disto exemplo os vidros e espelhos que, a cada momento, aparentam não ter a carga estrutural necessária e se expõem suspensos no abismo do colapso, um pouco à semelhança de 37 segundos, suspendendo o tempo e congelando cada momento e cada vibração. A dicotomia entre criação e destruição é algo presente na exposição e perpetuada noutras mostras – não através de fotografias, mas dos próprios fragmentos.[5] No entanto, Jacinto aparenta ostentar, através do elemento destruído ou desconstruído, o perpetuar do seu propósito de criação e interpelação, gerando a dúvida no espectador sobre se aquele é de facto o som que compõe e/ou desconstrói a Dança do Labirinto.

Regressando a Hume, o cerne do problema no mecanismo da imaginação encontra-se não apenas na fusão de ideias, mas também na simplificação de ideias mais complexas, como impressões de objetos, signos ou traços de memória.[6] Notemos a passagem sobre a qual o violoncelo é levado da sua construção à sua destruição e, novamente, à criação de um signo, mas que, de um modo ou de outro, nos é alheio à perceção. Ora, segundo o modelo da imaginação de Hume, as “desconstruções de impressões sensoriais em fragmentos de memória tornam-se excertos de ideias flutuantes que podem ser recombinadas em novas ideias”,[7] premissa possível a partir da qual a exposição se constrói no labirinto mental do visitante.

Em Dança do Labirinto, o som é matéria que cria e promove uma experiência imersiva e interativa, como uma ratoeira perpétua, sempre armada pelo próprio animal armadilhado e que pode, assim, aprisionar experiências indefinidamente e funcionar mesmo escondida no nosso subconsciente.

Dança no Labirinto encontra-se patente até 13 de dezembro de 2024.

 

[1] Claire Bishop, “What is installation art?”, in Bishop, Claire, 2005, Installation Art and Experience, London: Tate Publishing, p. 6.
[2] Graham Coulter-Smith, “Recombinación: desmistificando la creatividad: Juegos artísticos”, in Coulter-Smith, Graham, 2009, Deconstruyendo las instalaciones, Madrid: Brumaria A.C., pp. 141-142.
[3] David Hume, “An Enquiry Concerning Human Understanding: Of the Different Species of Philosophy”, in Hume, David, ed. por Thomas Green e Thomas Grose, 1875, The Philosophical Works of David Hume, Vol. IV, London: Longmans-Green and Co., pp. 9-10.
[4] David Owen, “Hume and Ideias: Relations and Associations”, in Owen, David, 1999, Hume’s Reason, Oxford: Oxford University Press, p. 67.
[5] Vd. O Parlamento de Caríbdis, 2022, na Galeria Bruno Múrias.
[6] Monika Jadzińska, “The Lifeplan of Installation Art: Processualism e Relativity of spatial relationships”, in Scholte, Tajta, e Wharton, Glenn, 2011, Inside Installations, Amsterdam: Amsterdam University Press, pp. 24-25.
[7] David Owen, “Intuition, Certaintly, and Demonstrative Reasoning”, in Op. cit., pp. 84-85.

José Pedro Ralha (Chaves, 1994) é licenciado em História da Arte, com especialização em Filosofia da Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e possui um mestrado em Estudos Curatoriais pelo Colégio das Artes da mesma universidade. A sua dissertação intitulou-se "A Instalação Artística através da obra de João Maria Gusmão e Pedro Paiva: Análise às obras 3 Suns, Falling Trees e Papagaio (djambi)". Participou em diversos projetos, destacando-se o LAND.FILL, 2019, com Gabriela Albergaria para o Laboratório de Curadoria; a Bienal de Coimbra Anozero '19 - A Terceira Margem, 2019; e Terçolho, 2021, exposição antológica de João Maria Gusmão e Pedro Paiva na Fundação de Serralves. Colaborou com a Fundação de Serralves e desempenhou o papel de Produtor Executivo de Projetos Museológicos para o Museu e Bibliotecas do Porto. Entre as exposições que produziu destacam-se: a Exposição Inaugural do Ateliê António Carneiro, 2024; Participação Já!, 2024; A Revelação: Os Manuscritos de Santa Cruz 1, 2024; 70 Anos TEP – Um Arquivo Vivo, 2023; A Urgência da Cidade: O Porto e 100 Anos de Fernando Távora, 2023; Para Aurélia: Desenhos de Fuga, 2023; Delírio & Cura, 2023; e Parque da Cidade: Composição da Paisagem, 2023. Atualmente, trabalha no Polo Cultural do Matadouro do Porto como Produtor Executivo de Projetos Museológicos, contribuindo para o desenvolvimento do Polo Cultural e do Museu das Convergências.

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