Cão pisteiro / Cão vadio: Miguel Marquês em Serralves
Das duas opções dadas no título risquem a que vos parecer menos adequada, porque confesso que não me consegui decidir sobre qual delas melhor representa a metáfora que me proponho a explorar (inspirada tanto pelas fotografias de cães na exposição quanto pela bastante informativa folha de sala[1]). Fico-me, portanto, no cruzamento entre ambas, ou numa espécie de alternância que já passo a explicar.
Soube no outro dia de uma instalação-vídeo em Zurique, do artista Roman Selim Khereddine[2], onde um polícia e respetivo companheiro canino circulam no espaço expositivo desabitado, o mesmo espaço onde aconteceria a exposição. Achei curioso que o protagonista não-humano estivesse ali – como está sempre – a cumprir alegremente uma função que o ultrapassa, longe do seu interesse direto, pois com certeza o fará por outros propósitos mais instintivos. O cumprimento dessa função é recompensado com o acrescento da mesma ao nome da sua espécie – cão-polícia –, acrescento esse que nada lhe diz, sendo que talvez tanto lhe interessasse fazer outra coisa qualquer.
Tendo isto em mente – mas ultrapassando por agora qualquer relação com a nossa vida e trabalho –, pus-me a pensar acerca deste projeto de Miguel Marquês, cuja conceção – e até ao próprio ato de expor – não parecem ser (e não nego uma certa simplificação) o propósito da sua fotografia, mesmo que este seja absolutamente fundamental.
Na folha de sala é-nos contado que Miguel Marquês conhece, através do medium, um imigrante moldavo de nome Valentin Perpelita. Este acaba por voltar ao seu país natal com algumas câmaras descartáveis oferecidas pelo fotógrafo, com a promessa de as enviar de volta com a viagem documentada por revelar. Na ausência de resposta por vários meses, Miguel Marquês acaba por embarcar num enredo algo Kiarostamiano, fazendo a mesma viagem de autocarro até Chișinău. Mas engane-se quem pensar que esta é unicamente uma aventura On the Road[3]: o trabalho deste não se aproxima conceptualmente de fotógrafos como Mouriyama, porque não é apenas sobre “estar em movimento”; parece-me antes ser sobre exorcizar essa pulsão de se deslocar – e fotografar – um território que lhe era, a dado momento, estranho, e que depois de perder a sua estranheza perde também a sua capacidade de suprimir essa necessidade. O fora-de-campo, o desenquadramento, o chão são elementos formais presentes nas fotografias que contribuem plasticamente para o reforço desta ideia de representar um território que não lhe é familiar, de aura perigosa – ou pelo menos é isso que as imagens me transmitem –, onde se sente um pudor de fotografar. Isto só é possível numa realidade distante, sem o ser demasiado.
Wim Wenders, outro cineasta dado à deambulação, disse uma vez numa conversa em Lisboa[4] que já quase não vale apena filmar as grandes cidades ocidentais, pois são todas iguais. Talvez o fotógrafo tenha visto nesta viagem uma oportunidade de encontrar os novos assuntos, tramas, temas e personagens que procurava em Lisboa, onde já chamava os sujeitos da sua prática de amigos, sendo precisamente um desses amigos que lhe abriu a porta para um novo mundo e talvez uma certa reinvenção do seu trabalho.
Achei curioso que venha descrito na folha de sala que os edifícios que o fotógrafo foi registando são de “função duvidosa” e “serventia questionável”, pois marcam um paralelismo com o abandono do propósito que cá o trouxe, pelo menos no que à fotografia diz respeito. Para voltar à metáfora, passa de cão-pisteiro a cão-vadio, sem esquecer a sua função, mas fazendo-o com um propósito diferente, e quase nos faz sentir que a aplicação futura das fotografias lhe é indiferente.
Miguel Marquês é o vencedor do Prémio Revelação Novobanco, que distingue nomes emergentes na área da fotografia. A exposição Walking Thru the Sleepy City na Fundação Serralves, no Porto, marca o regresso do Prémio ao Museu e está patente até 19 de janeiro de 2025.
[1] A folha de sala foi escrita por Ricardo Nicolau.
[2] A exposição Bite My Hand de Roman Selim Khereddine esteve patente no Helmhaus até dia 16 de junho de 2024.
[3] Livro de Kerouac.
[4] A conversa aconteceu no Nimas, no contexto dos 25 anos do filme Lisboa Story.