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Uma obra-amor por cada ano

O amor manifesta-se de diferentes e complexas formas, moldando-se, expandindo-se e redefinindo-se, revelando uma essência plural que se traduz em gestos de amizade, de cuidado e de compromisso. Este sentimento revela-se tanto nas conexões pessoais quanto naquilo que é construído colectivamente, fazendo-se notar como força que continuamente rearranja o sentido de partilha, comunhão e pertença. A Kunsthalle Lissabon, sob a direcção de João Mourão e Luís Silva, encarna, de maneira singular, esta multiplicidade do amor. Durante mais de uma década, a galeria tem sido um espaço de experimentação, acolhimento e inclusão cultural, actuando como um ponto de convergência para reflexões e colaborações que ultrapassam fronteiras. Tem vindo a colaborar com diversas instituições locais e internacionais, promovendo uma contínua reflexão sobre as práticas artísticas e curatoriais na sociedade contemporânea. Com uma abordagem inovadora e com um compromisso em expandir o entendimento do que deve ser mostrado, em que condições e como, a Kunsthalle Lissabon tornou-se, ao longo de 15 anos, um verdadeiro laboratório cultural onde as ideias, colaboração e criação artística são acolhidas com energia revigorante. Este ano, numa decisão que reflecte o desejo de olhar o passado, mas com espírito e vontade pela contínua renovação, o programa de exposições individuais foi temporariamente suspenso, cedendo espaço para uma série de exposições colectivas comemorativas do seu 15º aniversário. A fase de celebração culmina nesta terceira e última exposição colectiva, intitulada Quinze Anos de Amor na República dos Pangolins – título inspirado na obra República do Pangolim, de 2020, do artista Luís Lázaro Matos.

A mostra, composta por uma selecção de obras para cada ano de actividade, cobrindo o período de 2009 a 2023, dos artistas Ad Minoliti, Amalia Pica, Daniel Gustav Cramer, Flora Rebollo, Gabriel Chaile, Haris Epaminonda, Irene Kopelman, Jonathas de Andrade, Luís Lázaro Matos, Mariana Caló e Francisco Queimadela, Mounira Al Solh, Nuno Sousa Vieira, Sheroanawe Hakihiiwe, Sol Calero, Teresa Solar e Wilfredo Prieto, propõe uma revisão e celebração da trajectória da galeria, reflectindo o seu crescimento e o impacto que teve na construção de uma rede afectiva e cultural. Cada obra seleccionada é a representação de uma faceta particular do amor — seja pela “regeneração, que se revela de várias formas, pelo afeto filial e a colaboração, as formas de solidariedade com pares e comunidades, manifestações de afinidade para com outros seres vivos, expressões de amor-próprio e cura, ou classificações taxonómicas de modalidades de comunicar e declarar amor”[1].

O ambiente é de um universo imaginário, mágico, onde a interconectividade transcende barreiras. Cada obra funciona como agente que dissolve fronteiras e questiona os limites daquilo que se pode fazer, relacionar, mostrar e inventar. Columbófilos (2023), de Jonathas de Andrade, é prova de como o amor entre espécies faz, também, de alguma forma, deixar cair fronteiras culturais. O artista investiga o vínculo entre aquele que se dedica à columbofilia e os pombos, explorando o afecto e o compromisso que permeiam a arte da criação e treino dos pombos-correios. O filme, realizado durante uma residência artística e em colaboração com a comunidade local, destaca esta relação simbiótica que é testemunho do cuidado e respeito por uma tradição comunitária.

Em In Love in Blood (2024), Mounira Al Solh explora a plasticidade linguística do amor de diferente forma. Tendo como ponto de partida uma lista de palavras relacionadas com este sentimento, compilada por Ibn Qayyim El Jawziyya[2], filósofo islâmico, propõe uma viagem onde diferentes formas de expressar amor são transformadas numa instalação visual que articula diversas camadas e universos próprios da sua investigação e prática artística. Conhecida por explorar temas complexos como identidade e resistência, a artista constrói, nesta obra, narrativas poéticas através de têxteis coloridos e bordados, fazendo uso da linguagem, ilustrando figuras, animais e palavras relacionadas com amor.

Ad Minoliti, por sua vez, contribui para a narrativa apresentada com a sua energia assente numa abordagem que funde abstracção geométrica com teorias queer e feministas. Remete-nos para a ideia de que o amor é uma força expansiva e inclusiva. A composição a verde, de um cenário pós-humanista, evoca uma harmonia entre humanos e outras espécies, homenageando a ativista Lin May Saeed: Biology is Queer – Tribute to Lin May Saeed (2024). Minoliti convida-nos a repensar o amor como uma forma de empatia inclusiva que se estende ao não-humano e a arte como um agente de conexão entre diferentes formas de vida.

Amalia Pica tem vindo a debruçar a sua investigação na forma como o ser humano se relaciona e comunica. Interessa-lhe os modos humanos de interação, sobretudo o desejo de aprendermos e sermos compreendidos. Em Keepsake #9 (2024), o gesto leve e solto resulta em bordados coloridos que têm por base desenhos feitos pelo filho da artista. A acção de costurar, meticulosa e rápida, remete para a liberdade de expressão experimentada antes da escolaridade, antes de a forma como percepcionamos o mundo ser condicionada. Existe uma tensão deliberada entre a velocidade com que os desenhos são feitos e o tempo de cuidado e dedicação para bordá-los, explorando a memória, a regeneração e os efeitos psicológicos duradouros da infância.

Nuno Sousa Vieira, com a obra Opaco – Montagem final (2024), utiliza placas de aglomerado de madeira – que fizeram parte da obra Hole For All (2009), presente na exposição X-office For a Sculpture na galeria em 2009 – com outros materiais para criar uma instalação que combina o passado e o presente. Num gesto de preservação da memória, constrói um móvel moderno[3] onde estão presentes duas vistas da divisória de escritório do espaço da primeira Kunsthalle Lissabon. Transforma, actualiza e ressignifica no presente aquela que foi a primeira proposta da galeria.

Quinze Anos de Amor na República dos Pangolins celebra a história de um projecto que “insistiu, persistiu, avançou, abraçou, lutou, dançou, explorou, inventou, apoiou, acolheu, foi acolhida e ajudou a fomentar e unir a cena”[4] artística contemporânea. Celebra a história de um projecto que é prova da capacidade do amor em expandir os limites da experiência colectiva, do seu poder transformador e agregador, enquanto conceito e prática, capaz de criar um espaço de comunhão onde barreiras que limitam e restringem são superadas. A exposição convida-nos, através de diferentes narrativas e linguagens formais e estéticas, a pensar o valor das conexões afectivas e das redes de cuidado, reafirmando o poder do amor como agente unificador e de renovação.

A exposição, com curadoria de Filipa Ramos, está patente na Kunsthalle Lissabon até 14 de Dezembro de 2024.

 

Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.

[1] Palavras de Filipa Ramos, curadora, na folha de sala.
[2] https://www.mouniraalsolh.com/love-blood
[3] Construção do Estúdio de Som Compacto e Móvel, apresentado e descrito no livro Construções de Móveis Modernos, de G.B. Weber, Editorial Presença, 1980, pp. 99/108.
[4] Palavras de Filipa Ramos, curadora, na folha de sala.

Maria Inês Augusto, 33 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) como estagiária na área dos Serviços Educativos e trabalhou durante 9 anos no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada e actualmente desenvolve um projecto de curadoria de exposições de artistas emergentes. Tem vindo a produzir diferentes tipos de textos, desde publicação de catálogos, textos de exposições a folhas de sala. Colaborou recentemente com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas 2023.

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