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Acloc O’clock — Who’s afraid of the Big Bad Wolf?

Nem toda a força quem eu faça
vai mover esta montanha
fatalismo é o mal de quem tem tudo a perder
o bem de quem se julga impotente
uh uh-uh-uh

Dou a mim mesma tarefa pesada
estar sempre em toda a parte a toda a hora
no final do dia, um conjunto de estilhaços
que à noite recolo com minúcia
uh uh-uh-uh-uh

A cada recolagem talvez escape alguma coisa
na falácia de pensar que sou plena
se não parar nem desistir
se me esforçar vou conseguir
(…)

— Sallim, Linha de Tempo (com Leonor Arnaut)

 

Acloc Oclock apresenta uma clara coerência sobre a incoerência, ou sobre a inconstância ou inconsistência do ser contemporâneo – digo num mundo global orientado pelo capital, e pela “moral” ocidental. De imediato compreendi uma analogia entre a exposição e a canção de Sallim, que aparentam entoar em uníssono acerca da fugacidade da plena identidade em confronto com a necessidade ou obrigatoriedade da produtividade – e a subsequente condição de liminaridade sob a de estabilidade do eu. Uma Certa Falta de Coerência foi responsável pela curadoria desta sétima edição do ciclo Território, dedicado à cultura material, proposto pela Culturgest e pela Fidelidade Arte, onde está hospedada a exposição.

A opressão institucional aparenta ser o território de investigação preferencial do projeto cultural da dupla curatorial, composta por André Sousa e Mauro Cerqueira. E é de facto o que se confirma através das obras de Babi Badalov, Jac Leirner e Stephan Dillemuth. Partindo do principio, somos recebidos por um largo ecrã, onde corre um video em loop, de Dillemuth, do que aparenta ser uma auto-mutilação genital, no hall do edifício de traço convencional. Na realidade, as restantes obras do artista presentes na exposição – bem como o grosso modo do seu trabalho – estão apoiadas numa visceralização do corpo, do intelecto e do ego, materializando a impotência do individual perante a força da esfera oficial. Noutra sala, Dillemuth enjaula manequins mascarados e relógios parados, numa estética bizarra e carnavalesca. É o tempo enclausurado, polvilhado com doses circenses cegas e o humano-javali que consente a praga institucional e permite o rasgo da identidade individual por meio da segmentação da luta social que é, afinal, una: a luta de classes, no plural. Na parede anterior, o mesmo artista apresenta ainda uma série de telas, Futurspective Respective, onde reconhecemos superfícies urbanas degradadas, como um futuro exercício arqueológico onde se questiona a durabilidade da materialidade, pois, na verdade, é “mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”[1] — a meu ver assim será, à exclusão da hipótese de coletivismo.

“Na cidade onde ninguém quer chegar atrasado, o tempo é escasso”, lê-se numa breve prosa que substitui a folha de sala e que atua como extensão da exposição, ao invés de uma sugestão de interpretação da mesma – na verdade, a consistência do discurso curatorial e poético é tanta que a inclusão de mais informação seria redundante. Em bom rigor, o parágrafo inaugura com a explicita observação “em Setembro o relógio volta a imperar”. Explicita porque a escolha de palavras não é acidental, é o império do capital neo-colonial que estilhaça a identidade individual sob a institucional. Inaugurada em Setembro, no mesmo mês do retorno à azáfama laboral e no centro comercial da capital, o Chiado, Acloc O’clock obriga-nos a desacelerar o relógio protocolar, ou pelo menos a pensar sobre a possibilidade de desviar.

Babi Badalov, por sua vez, expõe I don’t know what I want what I don’t want, onde faz uma critica – bastante bem enquadrada, no Chiado, digo – à megalómana industria têxtil, da fast-fashion, à alta costura. É a indústria que tudo consome: a água, a aura artística, a poética do estilo individual e ordem global laboral — num esquema neo-colonial, como sugere o artista azerbaijanês sediado em Paris. Anti-kitch, anti-fashion, “anti-zara”, Badalov serve-se da palavra escrita, com recurso à caligrafia oriental, para criar um poema visual, apropriando-se das paredes institucionais e dos têxteis industriais. No centro do muro, onde se desdobra o início do seu poema, lê-se “language is geography” e aparenta ser este o cerne da sua denúncia — onde todo o resto está a ser uniformizado, exilado, trasladado e descontextualizado (sobretudo quando falamos da indústria têxtil), a língua ainda é uma ferramenta de resistência, ainda é vernacular, ainda é um lugar onde é possível dialogar, ou melhor, reivindicar, sem o receio da absorção pelo papão da indústria (ainda!) —, numa estética de rebelião, como se pintasse as paredes e as roupas da revolução.

Por último, Jac Leirner oferece-nos uma série de esculturas em arranjos plásticos ou em esquemas organizados de objectos coleccionados. Em ambos os casos, remete-nos para “lembranças de uma viagem e uma âncora no tempo”[2]. Enquanto, no primeiro caso, aparenta construir uma bibliotecas de imagens, com os próprios objetos, e criticar a frivolidade e a quantidade dos mesmos; na segunda situação, parece sublinhar a importância da cultura material na memória individual e cultural. Num mundo, de facto, global, onde a travessia mundial pode ser feita na medida de horas, será a antropologia da vida material o método ideal à reconstrução das travessias invisíveis e das afinidades construídas? Segundo a artista, depende do (também seu) arquivo pessoal, pois o institucional, com todo o peso do capital, não cumprirá a tarefa memorial. Fá-lo a artista por meio de cartões de visita de taxistas, lápis de souvenirs, máscaras e stickers — num conflito entre a preciosidade e a inutilidade de uma certa cultura material: “trés chique. Boring. Bêtise. But why? A simpatia e a revolta convivem na cidade e naquele que sobreviveu às mós da dor e da dúvida”[3]. Se não conseguirem apanhar as bitcoins perdidas no chão, não se preocupem, a artista também constrói um picotado nas paredes onde expõe as obras, e se as conseguirem rasgar levam metade das paredes para casa!

A transgressão d’Uma Certa Falta de Coerência é na verdade trans-fronteiriça, visto que já tem um pé dentro da areia movediça do espaço institucional. Ainda assim, esse lugar liminar continua a permitir a fuga às convenções e a denuncia às instituições: “e então a população percebe que, mais vale perder algumas ovelhas para o lobo, do que ter as plantações continuamente destruídas pelos javalis. O lobo não é mau e confunde-se com um estrangeirado que regressa a casa sem que o reconheçam”[4]. Será Uma Certa Falta de Coerência o Lobo da esfera institucional?

Acloc Oclock, com a curadoria de Uma Certa Falta de Coerência e obras de Babi Badalov, Jac Leirner e Stephan Dillemuth, está patente na Fidelidade Arte Lisboa até 3 de Janeiro de 2025.

Nota: A autora não escreve ao abrigo do AO90.

 

[1] Jameson, Fredric. Thee Seeds of Time. Nova Iorque: Columbia University Press, 1994, p. xii; e “Future City”, New Left Review, 21 de Maio/Junho, 2003, p. 76.
[2] Retirado da folha de sala.
[3] Retirado da folha de sala.
[4] Retirado da folha de sala.

Benedita Salema Roby (n. 1997). Investigadora e Escritora. Doutoranda em Estudos Artísticos: Arte e Mediações, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Mestre em Estética e Estudos Artísticos e Licenciada em História da Arte, pela mesma instituição. Neste momento encontra-se a realizar uma investigação acerca da correlação entre o graffiti (escrita criativa transgressiva) e a construção da esfera contra-pública e proletária, na cidade de Lisboa. Tem colaborado em projetos independentes com fotógrafos e writers, como é o caso do recente foto-livro da artista Ana Moraes aka. Unemployed Artist, Lisboa e Reação: Pixação não É Tag.

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