Flores, de Nicola Samorì
A flor profetisa sempre um fim. Ao olhá-la, revelam-se o tempo e a sua condição. O rebentar do botão, o brotar da flor e a queda das pétalas refletem o ciclo inevitável de tudo o que é vivo. Por isso, quando olhamos a flor, também nos vemos a nós próprios.
Na Monitor, a exposição Flores de Nicola Samorì coloca à luz a mortalidade e a decadência ao evocar o corpo humano e a sua condição efémera. Sobre o mármore ou a madeira, o artista utiliza o chiaroscuro para pintar minuciosamente figuras realistas que posteriormente são corroídas por apagamento ou incisões na superfície que suporta a pintura. O resultado são obras que aludem a um processo de decomposição que conduz a imagem a um ponto de rutura, onde o belo e a destruição se encontram.
Ao utilizar a destruição e o desgaste como linguagem estética, Samorì toca no tema da memória e do esquecimento. As figuras, tanto tangíveis como inacessíveis, tecem diálogos sobre a permanência e a decadência, como se à beira do esquecimento estivessem. As pinturas remetem a ícones do renascimento e barroco que têm o seu corpo (principalmente o rosto) deliberadamente deteriorado. Num presente saturado de imagens, a deterioração aproxima-as da ruína, vincula-as ao tempo, ao passado.
Ao pintar sobre mármore, o artista cria tensões entre a solidez imutável da pedra e a vulnerabilidade das figuras humanas. A escolha do mármore, tradicionalmente associado à permanência e à monumentalidade, contrasta com o desgaste e a condição efémera das figuras. A superfície é marcada por intervenções que corroem a pintura, criando cicatrizes e feridas na pedra que a aproximam da carne. A corrosão do rosto, que se desfaz numa textura áspera e irregular, alude a uma ferida aberta, revelando as camadas internas da obra e o oculto sob a superfície. Assim, o mármore subverte a natureza bidimensional da pintura e cria uma ligação entre a efemeridade do corpo humano e a materialidade eterna da pedra — um laço entre o calor e o frio, a carne e o mineral.
Nicola Samorì cria imagens que resistem deliberadamente à completude e à perfeição. As obras não se situam no idealismo, mas sim na condição transitória da carne, que como uma flor, nasce, desabrocha e cai.
Os temas de Samorì lembram-nos da obsessão contemporânea pela permanência digital e a preservação do eu. Num presente em que a imagem pessoal é amplamente construída e controlada, o artista resgata o facto inevitável que toda a representação carrega: o subtil prenúncio da própria deterioração. Ou, como escreve Óscar Faria na folha de sala da exposição, o “trabalho de Nicola Samorì é acerca dessa espera pela morte. A ferida aberta no corpo de Cristo, pintada por Antonello da Messina; o corte feito por Fontana no cinzento monocromático de Concetto spaziale, Attesa, 1960; as incisões ou enxertos que Samorì faz nas suas obras: exemplos desse aguardar por um tempo que há de vir.”.
Flores lembra-nos que cada imagem, cada flor e cada corpo carregam, desde o seu início, um presságio do seu próprio fim.
A exposição está patente na Monitor até ao dia 23 de novembro de 2024.