Triunfo: Jorge das Neves no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra
Entre o surrealismo e o dadaísmo, entre o subterrâneo e a superfície, Jorge das Neves apresenta uma exposição monográfica que o Colégio das Artes da Universidade de Coimbra acolhe até dia 29 de novembro.
Da abordagem surrealista, enformada no rodapé negro pintado que percorre todo o espaço, uma sensação de paralelismo com as doze centenas de sacos de carvão na Exposição Internacional do Surrealismo, em 1938. Perante a inclusão desta faixa infiro uma intenção do artista na divisão do espaço, criando uma profundidade, um subnível, partilhada entre o espectador e as Tampas Altas – tampas de ferro fundido commumente utilizadas para saneamento urbano e que se espalham por toda a exposição. Para entendermos parte da carga irónica deste gesto é importante recuperar um episódio da vida do artista no qual, ao caminhar pela cidade do Porto, é confrontado com a mensagem de perigo que viria a inscrever nestes objetos sem que, na altura, lograsse sequer ver algum, provavelmente pela bizarra inexistência dos mesmos: “ATENÇÃO TAMPAS ALTAS” foi, na altura, uma mensagem pífia que ganha agora uma relevância superlativa no contexto desta exposição. Interessante e provocadora, esta ideia do perigo se tornar real através da criação artística.
Num percurso praticamente a preto e branco, as obras partem do universo autorreferencial do autor, tornando-se estranhamente familiares através de vários elementos que as compõem.
Dias no Chumbo trata-se de uma apropriação ready-made de um conjunto de figuras kitch típicas de uma qualquer loja de quinquilharias, sob um conjunto de candeeiros que categorizaria da mesma forma. Sobre elas, o artista derrama chumbo, corrompendo-as. São imagens em pleno processo de obliteração. Como uma rememoração – entre uma memória do que vimos e o que vimos de uma memória. Kronos é constituído por quatro fotografias de quatro montes de barba do artista, recolhidos num período de 10 anos. A escala e a ausência de um rosto deturpam-nos a perceção. Em Puxa Empurra, duas fotografias dos lados opostos de uma caravana, o tempo volta a ser assunto: não para verificarmos o seu natural avanço, como anteriormente, mas sim para vermos a forma como o artista o aplana através destas duas imagens.
Vigília é composta por 8 fotografias nas quais um colchão é presença comum, um objeto que, na visão de Jorge das Neves, mimetiza aqui um outro, bem mais convencional em termos artísticos – a tela. A ideia de colchão, confrontada com as imagens inóspitas que aqui lhe dão fundo, faz-me pensar sobre o conceito de casa, relacionando-a inevitavelmente com os problemas do real, que despoletam agudizações cada vez mais prementes no dualismo público/privado. Esculturas feitas com a cabeça são fragmentos de barro trabalhados com a parte do corpo justamente referida no título. Consigo imaginar o absurdo do gesto, mas também o seu lado maquinal. Um ato de contrição que se reflete na densidade matérica.
No último espaço, a escuridão intensifica-se para se ouvir, de uma em uma hora, a frase “A vida está boa é pra alguns, pá!”, dita por um transeunte anónimo e captada pelo artista de modo espontâneo. Se por um lado se adensa uma certa crítica social contida nesta exposição, por outro encontro uma clara relação entre este adágio e aquela que acredito ser a substância de Triunfo: um corpo das profundezas, meio ausente meio líquido, deambulante, formado entre o artista, o mundano revestido de cidade e a relação que estabelecem. Poder-se-ia dizer o mesmo de tantas outras exposições, sabemos, mas Triunfo, de Jorge das Neves, explora esse mundanismo de uma forma particularmente visceral, rumo a um estranho conforto com o absurdo.
O Colégio das Artes da Universidade de Coimbra acolhe, no mesmo período, a instalação site-specific ah!, de João Belga, no Quarto 22. Uma reflexão pictórica existencialista com origens no dealbar do período pandémico que incorpora o conceito de repetição – João Belga pintou compulsivamente sobre a mesma tela durante dois anos – e o dualismo visível/invisível – a instalação divide o espaço expositivo, destacando uma parte e ocultando outra, inevitavelmente.