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Chelas: Nha Casa Nha Bairro

Nha Casa Nha Bairro é um projeto comunitário que procura investigar, documentar e partilhar a multiculturalidade e a complexidade do tecido social de Chelas, em torno da exploração dos conceitos de comunidade e memória. Os primeiros resultados foram apresentados no dia 26 de outubro, na Biblioteca de Marvila, com uma peça de teatro infantojuvenil e uma versão curta de um documentário ainda em desenvolvimento.

A marcha de Santo António abre o espetáculo, situando-nos de imediato no tempo e no espaço: estamos numa Lisboa contemporânea, imersos numa tradição reconhecidamente portuguesa; são portuguesas as crianças que marcham. Com elas, carregam uma bandeira feita das bandeiras de países e povos que, apesar da distância, fazem parte de si e deste lugar: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, e o povo Rom. Em poucos minutos, os gestos contidos e regulares da marcha transformam-se em movimentos energéticos, envolvendo o espetáculo numa sonoridade vibrante e contagiante. Estamos ao som de um funaná, descubro mais tarde – música de Cabo Verde. A luz ilumina a plateia e, em resposta, o palco estende-lhe um convite: a plateia ocupa o palco, o palco a plateia, e os atores dançam com familiares e amigos numa celebração espontânea que une dois lugares que tradicionalmente não se tocam. A magia de os ver fundidos transporta-me imediatamente para a imaginação de um mundo diferente – um mundo onde as fronteiras fossem definidas pelas necessidades, onde o bem-estar e o acolhimento fossem prioritários sobre argumentos burocráticos de linhas imaginárias e, por exemplo, de pactos internacionais que desmembram famílias.  Ali, essa breve exceção foi suficiente para dar conforto e coragem às crianças que enfrentavam pela primeira vez uma grande audiência, e confiança para prosseguirem perante o desconhecido. Em simultâneo, aquela congregação – uma grande festa entre a ficção e o documentário – ofereceu-nos uma resposta inicial, sem palavras, à questão que este trabalho convoca: o que é a comunidade? Dá-se então início ao espetáculo falado, onde as crianças procuram respostas que já haviam explorado por via dos desenhos trazidos a palco: “é estarmos todos juntos”, “brincarmos na rua”, “é um conjunto de amigos”, “um grupo de pessoas com o mesmo objetivo”, “é como uma festa de aniversário, onde fazemos novos amigos para brincar, e os adultos se divertem”.

O cenário é rico em simbolismo, refletindo o presente e a memória coletiva de Chelas. Uma mala de viagem e um relógio assinalam marcos da história do bairro: 1974-1975, 1980-1983, 2009-2012, 2024. No meio de “prédios de todas as cores”, crianças jogam à bola na rua e um grupo de amigos faz um churrasco ao lado de uma receita guineense, Galinha Cafriela. As personagens são lilases e não têm rosto.

Numa dialética constante entre gerações – os mais novos no palco e os mais velhos no ecrã –, o conceito da memória é explorado a partir da narração de histórias das famílias de Chelas, recolhidas nas casas, na rua e no Centro Maximiliano Kolbe. O texto teatral foi criado pelos jovens e crianças a partir dessas conversas, com o apoio de formadores nas áreas de Teatro, Filosofia e Direitos Humanos. A seleção dos atores resultou de uma chamada de participação dirigida a jovens residentes no bairro, entre os 8 e os 14 anos. Entre as memórias evocadas, a comida é central: o cheiro da cachupa e da muamba, o picante dos pastéis com diabo dentro, ativam memórias de família e de casa. Fala-se de pessoas que já partiram, de casas que foram destruídas, de serviços que já não existem. Passaram-se cerca de cinquenta anos desde que os primeiros moradores vieram habitar o bairro recém-construído; um pedaço de cidade de 510 hectares projetado nos anos 60 para acolher 55.000 habitantes. Desde aí muita coisa mudou. Multiplicam-se as histórias sobre a ausência de medo, o sentimento de família, os encontros, a alegria e a entreajuda constantes. Embora também se contem histórias antigas de rivalidades entre bairros próximos, como também sempre foi apanágio dos bairros do centro de Lisboa, o sentimento que prevalece é o de pertença – essa sensação comum a quase todas as pessoas e a todos os lugares que se recusam a imaginar fora do seu contexto: não querem viver noutro lugar. Chelas é casa. “Nascemos aqui”.

O próprio nome “Chelas”, que tem vindo a desaparecer do mapa – agora é tudo Marvila – tornou-se símbolo de resistência identitária: sobre argumentos burocráticos, tenta-se ocultar a realidade, e os moradores respondem com a criação de uma associação que grita “Chelas é o Sítio”, uma afirmação de orgulho que se encontra identificada um pouco por todo o bairro, em lugares bem visíveis.

O espetáculo termina com uma das jovens a cantar a música Chelas, de Sara Correia, fadista do bairro que fez questão de usar a fama para voltar a meter Chelas no mapa. Retomando a lógica do início do espetáculo, esta música evoca a riqueza da pluralidade identitária, onde uma tradição dos bairros populares de Lisboa, como o fado, se encontra com a expressão urbana de um bairro dito social: “trago o fado na voz e ténis nos pés”. A peça de Sara Correia confronta o público com as pressões sociais para que esconda as suas raízes, mas termina afirmando que “não sou de mais lado nenhum, eu sou de Chelas”. Este testemunho evidencia a urgência de respeitar e afirmar identidades, especialmente em contextos onde a marginalização e o estigma desumanizam.

Quis o acaso que, ao mesmo tempo que Nha Casa Nha Bairro era apresentado, milhares de pessoas estivessem a descer a Avenida da Liberdade, numa manifestação organizada pela associação Vida Justa como resposta à morte de Odair Moniz. Natural de Cabo Verde, habitante do Bairro do Zambujal, Odair foi morto pela PSP na Cova da Moura no dia 21 de outubro. Nha Casa Nha Bairro é uma iniciativa da Associação AfriCandé e da Sociedade das Primas, associações criadas em 2023. AfriCandé é uma homenagem a Bruno Candé, vítima mortal de um crime de ódio racial no meio de uma rua de Moscavide, no dia 25 de julho de 2020. Antigo residente de Chelas, Bruno Candé foi o ator que em 2014 ajudou a levar uma companhia de teatro, a Casa Conveniente dirigida por Mónica Calle, para o centro de uma comunidade fragilizada pelo preconceito e pela marginalização, a Zona J. O objetivo das Sociedade das Primas é combater o preconceito através de representações artísticas que promovem a inclusão e a empatia. Ambas parecem acreditar na capacidade transformadora da arte como meio educativo e no seu potencial para inspirar mudanças sociais.

Durante esta última semana, Portugal parou para falar sobre “bairros” – lugares que nasceram de políticas públicas que, ao longo de muitos anos, se esforçaram para enfrentar crises habitacionais como a que hoje atravessamos. Muitos desses esforços, como no caso de Chelas, resultaram de colaborações extraordinárias entre decisões políticas, estratégias de implementação e gestão pública, propostas inovadoras de urbanismo, arquitetura, engenharia e paisagismo, e uma análise sociológica comprometida em mapear necessidades, preferências e modos de vida. Foram esforços coletivos para fornecer habitação digna e acessível ao “maior número”. Sabemos que muitos desses projetos enfrentaram desafios inesperados e falharam algumas das expectativas iniciais. Durante os últimos dias, as vozes de estigma e discriminação, oriundas de quem nunca entrou nesses espaços, contrastam com movimentos e associações civis que, com um envolvimento político e ativo, se dedicam a melhorar a vida nesses lugares. É aqui que o teatro comunitário revela o seu poder: não só como espaço de educação e reflexão para os jovens que nele participam, permitindo-lhes crescer através do processo coletivo que necessariamente define o teatro, mas também como um espelho das realidades e uma ferramenta de resistência que transforma a perceção pública e pode, a longo prazo, contribuir para políticas mais justas. Iniciativas como Nha Casa Nha Bairro são cruciais neste processo, oferecendo ao público uma representação autêntica dos bairros e combatendo a ignorância e o preconceito. Este é um teatro que, ao humanizar, politiza – um ato de resistência que nos convida a imaginar e construir uma cidade mais inclusiva e atenta à complexidade que a define.

Nha Casa Nha Bairro é um projeto apoiado pelo programa “+Cultura” da Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo. A direção do projeto foi conduzida por Beatriz Teodósio (Teatro), Ivânia Vera-Cruz (Filosofia) e Martinho Filipe (Documentário). Trabalharam colaborativamente em todas as frentes. A música foi desenvolvida por Henrique Rosário, a cenografia foi conduzida por Inês Rochato e o desenho de luz por Bee Barros. Em palco, Bea, Enzo, Maria, Valentina, Vitória, Nayala, Noa, Yasmin e Ivânia deram voz a Chelas.

Zara Ferreira (n. 1988) é arquitecta e mora em Alfama. Foi investigadora do projecto EWV_Visões Cruzadas dos Mundos, colaborou com o atelier Tetractys Arquitectos e participou na representação portuguesa na 14ª Exposição Internacional de Arquitetura, Bienal de Veneza de 2014, também como copy-editor do Journal Homeland-News from Portugal. De 2014 a 2018, foi secretária-geral do Docomomo International (the International Committee for Documentation and Conservation of Buildings, Sites and Neighbourhoods of the Modern Movement) e co-editora do Docomomo Journal. Entre Lisboa (IST) e Lausanne (EPFL), está actualmente a fazer doutoramento sobre estratégias de preservação dos conjuntos habitacionais do pós-Segunda Guerra Mundial na Europa. Nas horas vagas dedica-se à viagem, ao teatro, à escrita, à fotografia e ao que mais o acaso lhe vai pondo na frente.

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