Entrevista a João Mourão e Luís Silva, curadores da primeira mostra da Colecção Vasco Santos
Foi num dia de temporal que visitei a exposição O Futuro Nasce a Cada Amanhecer, patente até 24 de Novembro no MU.SA – Museu das Artes de Sintra, acompanhada pelos curadores João Mourão e Luís Silva. Primeira mostra da Colecção Vasco Santos, está longe de se apresentar como uma visão exaustiva ou definitiva do acervo. Parte da representação do corpo humano – seja pela sua presença ou ausência – para, de forma crítica e provocativa, levantar questões políticas, de identidade e transformação. Deste encontro surge a conversa que se segue.
Maria Inês Augusto: Antes de mais, estou curiosa, enquanto dupla de curadores que trabalha há muitos anos junta, como é que desenvolvem as vossas ideias em conjunto? Existe um processo colaborativo específico que adoptam para criar uma exposição?
João Mourão e Luís Silva: É um processo tão natural que acreditamos não haver uma metodologia específica. A chave é o diálogo. A forma como trabalhamos é muito natural, muito orgânica. Passamos horas e horas a conversar, seja de um projecto concreto, seja de outros assuntos. Discutimos o que é que será legítimo fazer curatorialmente com as obras de arte, que caminhos queremos percorrer… esse aprofundamento manifesta-se nos projectos. Uma das razões pelas quais gostamos tanto de trabalhar em dupla é, também, porque o diálogo faz-nos questionar. A curadoria, tal como a prática artística, tende a ser muito solitária. Uma pessoa sozinha pode achar que está a ter uma grande ideia e, afinal, não está… (risos). No fundo é ter um reality check ao lado. Isso é muito bom. O nosso processo parte de um pingue pongue, um lançamento de ideias um ao outro, mas também do entendimento do mundo, e aqui aproximamo-nos bastante. A nossa prática curatorial vem muitas vezes do nosso posicionamento perante o mundo, perante a arte, as instituições culturais, o que pensamos, o que queremos. O que é podemos acrescentar a estas práticas e qual a nossa contribuição.
MIA: É conhecido o vosso interesse em explorar diferentes formatos e linguagens expositivas. Pensaram logo numa estratégia inovadora ou abordagem experimental para esta exposição? Como é que tudo começou?
JM+LS: Mais uma vez o diálogo. A exposição surge do convite que os coleccionadores nos fizeram para realizarmos a curadoria da primeira vez que a colecção iria ser apresentada publicamente e, antes sequer de começarmos a definir parâmetros de actuação, conversámos sobre a colecção em si e qual o nosso papel enquanto curadores numa primeira mostra de um grupo de obras como este. Partimos de uma auto-reflexão – é um projecto curatorial nosso e começa precisamente por aí, de que forma é que podemos transformar este projecto numa coisa que faça sentido para nós, que nos motive e na qual nos possamos, de alguma forma, rever – para depois nos debruçarmos sobre a colecção e os coleccionadores. Percebermos as idiossincrasias da colecção, percebermos quem colecciona, de onde tudo isto vem… Uma coisa que nós fazemos muito é trabalhar sempre a partir do contexto. Perceber que colecção é esta, que objectivos e obras existem, expectativas em relação a um momento tão importante como este (a primeira exposição da colecção)… por isso vem carregado de muita emoção e muita ansiedade. Acabamos por ser, de alguma forma, os guardiões desses sentimentos e, por isso, sentimos a responsabilidade. Confiaram-nos.
MIA: Houve algum espanto ou surpresa por parte dos coleccionadores em relação ao caminho que seguiram? Alguma limitação? Ou tiveram carta branca?
JM+LS: Trabalhámos sempre numa premissa de partilha de objectivos e de ideias, nunca houve nenhuma limitação àquilo que queríamos fazer, à nossa selecção e às narrativas que estávamos a querer criar. Mas sim, há sempre uma surpresa quando se vê a exposição montada. Uma coisa é ver-se as peças em casa ou armazenadas, outra é ver a unidade, ainda para mais num espaço como estes. Vai-se coleccionando de forma acumulativa, vai-se acrescentando mais e mais e, de repente, vê-se a criação de possíveis narrativas que fazem sentido é surpreendente. Por isso acreditamos que sim, descobrirem as possibilidades de narrativas da própria colecção foi uma das grandes surpresas. Quisemos também deixar claro que esta era uma visão possível – a colecção não é isto, ou só isto. Imensos artistas importantíssimos não estão aqui representados, por exemplo. Há artistas que estão representados na colecção com grandes núcleos de obras e não queríamos isso também. Nunca seria um solo, sempre quisemos que houvesse diversidade.
MIA: O Futuro Nasce a Cada Amanhecer: qual foi a principal ideia por trás do título?
JM+LS: O futuro está em constante estado de projecção, de construção e com cada amanhecer é um dia novo em que podemos imaginar o que quisermos que ele seja. Daí vem a resignificação mais política do futuro, como campo de possibilidades que depende da nossa acção, individual e colectiva. A exposição, a meio, acaba por ser muito sobre isso, e é curioso ter ficado no centro, no coração da exposição. Há um caminho até lá chegarmos e há um caminho depois de lá chegarmos, mas o centro da exposição é de um carácter mais político. No fundo, futuro é o que nós quisermos que ele seja, é aquilo que produzirmos colectivamente. A própria ideia da colecção é um exercício de escrever o futuro. Estes objectos, neste momento, pertencem a estas pessoas, que tomam conta… mas estas peças vão existir muito para além delas e por isso há esta ideia de que, de facto, se está a construir para o futuro.
MIA: De entre as 1100 obras que compõem o acervo da Colecção Vasco Santos, iniciado em 2001, seleccionaram 84 obras de 45 artistas de diferentes nacionalidades. Como foi o processo de selecção destes artistas tão diversos?
JM+LS: Durante muito tempo estivemos só a olhar para as obras e a perceber o que poderia surgir, de forma intuitiva, dali. Quando nos interessou a ideia de corpo e da representação da figura humana, aí começamos a olhar para as obras, independentemente dos artistas, do nome, e começámos a explorar a possibilidade de construir uma narrativa, já tendo também em conta o espaço. Havia esta linearidade e esta ideia de salas, que poderiam funcionar como unidades discretas dentro da própria narrativa geral da exposição e, à medida que isto tudo se ia consolidando, de forma mais ou menos intuitiva, começámos a explorar um conjunto de preocupações que são as nossas –- questões de representação: homem, mulher, a representação de vários continentes, nomeadamente o africano que tem grande expressão na colecção… quisemos que as especificidades e as idiossincrasias da exposição se fizessem notar nesta primeira mostra. Por isso achamos que foi tudo isto que acabou por definir a selecção das obras. Por exemplo, a última sala é já um último momento de trabalho, uma espécie de nota de rodapé importante. Pensámos: vamos fazer esta sala, extra-exposição por assim dizer, como gesto e acção de questionamento da narrativa do mestre e da genialidade artística, em confronto ou diálogo com o trabalho da Adriana Proganó. Este último momento tornou-se evidente e necessário quando já tínhamos a narrativa da exposição construída. Até porque nos interessava também trabalhar obras de artistas que nunca pensámos vir a trabalhar desta forma, Cesariny, Nadir Afonso, Pomar…. permitimo-nos também esta liberdade.
MIA: Qual a importância de fazer uma exposição como esta que, em simultâneo, nos mostra trabalhos de diferentes gerações de artistas, uns consolidados e outros numa fase de arranque de percurso artístico? Essa decisão dialoga com a ideia de futuro?
JM+LS: Arte é arte. Independente da idade, da fase da carreira, da origem geográfica, arte é arte, e não havia motivo para que isso não acontecesse aqui. Há temáticas que podem e devem ser colocadas em diálogo e confronto. Não queríamos isso como limite. Há alturas em que de facto possa fazer sentido essas noções ou pressupostos, mas, para uma exposição desta natureza, só tínhamos a perder se ficássemos presos a essas questões. E sim, sem constrangimentos, está relacionada com a ideia de futuro. A convivência de forma crítica, e até possivelmente humorística, de peças do agora com peças dos anos 70 deve ser feita, permitindo diálogos e ligações que podem não ter sido pensadas anteriormente e isso é verdadeiramente recompensador.
MIA: Era importante para vocês abranger um período de tempo específico?
JM+LS: Aconteceu por acaso. Partimos das peças e depois é que essa baliza temporal se criou. Não havia uma barreira temporal que quiséssemos especificamente abranger. Foram as obras que falaram connosco, não datas, nomes… foram as obras.
MIA: Relativamente ao processo curatorial e expositivo, o que influenciou as vossas decisões? O espaço expositivo influenciou a materialidade da exposição?
JM+LS: Fazer uma exposição num espaço que consiste numa sequência de salas que limitam o campo de visão é diferente. Mais do que a arquitectura do espaço, o que nos guiou foi pensar o percurso que o espectador faria e deixar que esse caminho que imaginámos também guiasse a definição da narrativa expositiva. Funciona como um círculo que revela as metamorfoses do corpo. Por isso, sim, o espaço acabou por definir como iríamos trabalhar a colecção. Cada sala é uma unidade de significado, unidades de ligação dentro da exposição.
MIA: Vivemos em tempos de mudanças rápidas e incertezas. Acham que a arte tem o poder de antecipar ou influenciar o futuro ou, por outro lado, de reflectir uma espécie de análise crítica do passado e do presente?
JM+LS: Acreditamos que a arte tem carácter prospectivo. Mesmo que esteja, de algum modo, a retratar o presente ou a fazer uma crítica do presente, apresenta sempre uma possível leitura para o futuro, para a produção de um futuro. Acho que a arte dá possibilidades de entrada para um pensamento mais ético ou um mundo mais igualitário, mais participativo e democrático. Acreditamos que a arte tem esse poder. Tudo o que fazemos, toda a actividade humana, define o futuro. A nossa acção colectiva hoje é o que define o que o futuro vai ser amanhã. A arte enquanto actividade humana determina o futuro, mas não mais do que qualquer outra actividade. Tudo o que fazemos tem impacto e define o que o amanhã vai ser. Achamos que a arte tem a capacidade da metáfora. Tem a capacidade de nos fazer imaginar o que poderia acontecer de outra forma. Dá-nos uma janela para outras formas de se pensar e viver o amanhã. Termos um horizonte vasto de possibilidades é muito importante. A arte diz-nos que há uma série de possibilidades abertas à nossa frente, é só uma questão de as imaginarmos. É fundamental vermos o que está para além das sombras.
MIA: Como é que vocês imaginam o futuro das práticas curatoriais e da produção artística? Que tipo de inovações gostariam de ver no futuro relativamente à curadoria e à forma de pensar colecções e exposições? O que é que é preciso mudar e o que é que é preciso manter?
JM+LS: Isso é uma conversa complicada… (risos). Precisamos de boas práticas, que os agentes curatoriais ou institucionais definam um guia de boas práticas. É muito importante. Consideramos que qualidade de trabalho para os curadores e para os artistas é fundamental. Estas questões têm que ser acauteladas, não instrumentalizadas, não exploratórias. É preciso não maltratar obras de arte, curatorialmente não fazer as obras fazerem o que não é suposto fazerem, não forçar significados, não fechar o campo de possibilidades das obras… Acho que tudo isto é muito importante e que tudo isto passa por boas práticas. Depois achamos também que tem que haver espaço para projectos de pequena e média dimensão. Uma das coisas que tem vindo a acontecer é que as grandes instituições têm vindo a tirar o fôlego, o ar, a tudo o resto. Há muito trabalho que é feito por entidades de pequena e média dimensão que tem vindo a ser cada vez mais menosprezado e acho que isso é bastante problemático, sobretudo do ponto de vista político. É muito difícil para jovens artistas criarem espaços expositivos. A questão da renovação, de novos curadores, novos artistas… como é que estas práticas têm espaço para entrar num ecossistema quando as condições são cada vez mais precárias e mais complicadas. Quando tens as cidades cada vez mais caras, com maior dificuldade em criar espaços alternativos ou independentes, como é que estes circuitos de legitimação são possíveis ou não, e que fórmulas é que todos, enquanto comunidade, vamos conseguindo imaginar quando aquilo a que assistimos é o reverso — as grandes instituições a tomarem conta desses espaços públicos, da crítica, da imprensa… tudo isto está, de algum modo, apenas garantido a estas instituições. Todos estes pequenos espaços de que falamos ou manifestações mais espontâneas e pontuais deixam de conseguir ter visibilidade e, até mesmo, surgir. Como é que alguém neste momento consegue iniciar um projecto, como é que um artista consegue mostrar trabalho pela primeira vez, para além da faculdade. A ansiedade dos jovens artistas é encontrar uma galeria comercial. O que é que se passou para que a preocupação seja esta? São questões de sobrevivência, de se poder ter retorno financeiro mas e tudo o resto? O espaço para o erro, para o diálogo, para a experimentação?
Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.