O tributo a Lawrence Weiner
Não excluindo a minha desatenção ou inexperiência enquanto factor, não me lembro de alguma vez ter ouvido o termo “tributo” aplicado a uma exposição de arte composta por peças do próprio visado. Remete de imediato para o campo da “música”: bandas de covers, rock-stars de bancada – ou de balcão –, músicos amadores a viver e a alimentar-se das glórias de outras gentes em bares noturnos e marginais nas periferias das cidades, frequentados por motards e outras personalidades punk cuja estética e o estereótipo se aproximam de alguma forma à figura de Lawrence Weiner.
Abandonando a aparência dos personagens como única evidência da semelhança, talvez esta linha de raciocínio não seja assim tão disparatada quanto se poderia supor. Num lendário statement do artista – presente naquela bíblia de textos compilados que é a Art In Theory 1900-2000 –, este diz-nos: “Qualquer pessoa que faça uma reprodução da minha obra está a produzir arte tão válida quanto a feita por mim”[1]. Esta tradução livre “de uma língua para a outra” – profundamente marcada pela linguagem conceptual do final dos anos 60 – poderia certamente fazer parte de uma discussão ultrapassada na arte de hoje – excluindo no campo da pintura – que tem a ver com o próprio gesto. No entanto, esta frase mantêm-se pertinente porque não era apenas irrelevante ao artista se a peça era ou não feita por ele, era-lhe irrelevante se a peça era construída de todo ou se ficava apenas pela linguagem.
Nesse sentido, e para utilizar a mesma metáfora, Weiner não é um intérprete da sua própria obra – mesmo que o possa ser –, é, antes, um compositor que entrega a pauta e não se responsabiliza com o que fazem com ela no ato da recepção, ou não seria a ambiguidade – que possibilita interpretações subjetivas – um dos mais discutidos tópicos no trabalho do artista americano, e que oferece aliás o mote ao titulo desta exposição. O próprio utiliza o termo mise-en-scènes para definir a sua prática, e afirma: “Arte que impõe condições – humanas ou outras – ao recetor para a sua apreciação, aos meus olhos constitui fascismo estético.”[2]
Mas então de que se trata essa sensualidade do gesto de que falam os curadores desta homenagem? A resposta – algo contraditória com o descarte da matéria defendido anteriormente – encontra-se no mesmo discurso que valida a prática deste artista enquanto escultura, sendo que isto foi em primeiro lugar reivindicado pelo mesmo. Numa entrevista de 97 a Benjamin Buchloh, quando questionado pelo motivo dessa designação, Weiner responde: “Compreendi então que trabalhava com os mesmos materiais que as pessoas chamadas escultores trabalham. Trabalhava com massa, trabalhava com todos os processos de retirar e colar. É um problema de designação. Compreendi também que lidava com estruturas muito generalizadas de forma extremamente formalizada (…) não me parece que estivesse a fazer nada de muito diferente de quem manipula 14 toneladas de aço”[3]. Da linguagem, provida de “uma total literalidade e compulsão metafórica”[4], o artista cria materialidade através da “relação realista e performativa com o espectador”[5]. Nos diversos materiais que observamos nesta exposição – livros, cartazes, revistas, discos, para além das habituais esculturas de parede – entendemos como a linguagem, enquanto material, se relaciona e adapta ao seu suporte; como lida com a massa, com o ambiente e com o seu contexto. Digo “entendemos” porque é a partir do lugar do espectador que se criam individualmente essas relações, e essas relações são para o artista sensuais e performáticas, como uma dança.
Numa nota pessoal, talvez a peça que melhor cumpra a função de tributo seja A REMOVAL FROM THE LATHING OR SUPPORT WALL OF PLASTER OR WALLBOARD FROM A WALL, indissociável da foto de Weiner em tronco nu, com habitual barba comprida e um cigarro na boca a “esburacar” ele mesmo as paredes do Kunsthalle de Berna, nessa louca aventura que foi a When Attitudes become Form. Se se aplicar ao titulo da exposição – I’ve Always Loved Jezebel –, o mesmo exercício que se aplicaria a qualquer outra obra do artista, diria que esta nos dirige a uma sensação nostálgica, que remete à ética, integridade e atitude a que a consistência do trabalho do artista nos habituou. É uma interpretação minha, mas nestes termos – os de Lawrence Weiner – é válida e existe.
I’ve Always Loved Jezebel está patente na Galeria Cristina Guerra em Lisboa até dia 9 de novembro de 2024. É organizada por Thiago Tannous, Pontogor e Joaquim Pedro em parceria com a coleção Moraes Barbosa.
[1] Harrison, C.; Wood, P. (2003). Art In Theory 1900-2000: An Anthology of Changing Ideas. Blackwell Publishing, p. 893.
[2] Idem, p. 894.
[3] Tradução feita no livro de Delfim Sardo, O Exercício experimental de Liberdade, da entrevista ao artista intitulada “Art is not about Skill”: Benjamin Buchloh Interviews Lawrence Weiner On His Sensual Approach to Conceptual Art. Disponível em: https://www.artspace.com/magazine/art_101/book_report/art-is-not-about-skill-benjamin-buchloh-interviews-lawrence-weiner-on-his-sensual-approach-to-54588
[4] Sardo, Delfim. (2017). O Exercício Experimental de Liberdade. Orfeu Negro, p. 28.
[5] Idem, ibidem.