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Amadora BD — A Ficção, a Fantasia e a Imaginação fazem parte da Revolução

“Mas mãaaaae, eu não sei ler!”
“Então vê as ilustrações!”

Foram estas as primeiras palavras que ouvi ao entrar no Parque da Liberdade (antigo Ski Skate Park), na Amadora, onde decorreu a 35ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada — Amadora BD — entre 17 e 27 de Outubro. Esta interação entre uma mãe e um filho aparenta revelar uma atitude de desprezo pelas limitações da tenra idade quando, na verdade, muito pelo contrário estimula a possibilidade de uma liberdade interpretativa — entre a própria representação e a imaginação, num jogo de associações proveniente de uma “biblioteca de imagens” com pouco mais de meia década. A recorrente associação entre a arte da Banda Desenhada e o público infantil é tanto libertadora como limitadora — na verdade, a BD constitui muito mais do que textos ilustrados, ou ilustrações legendadas constitui, afinal, uma reciprocidade entre a palavra e a imagem que não está assente numa relação de complementaridade, mas numa de cumplicidade: “alterando o título a uma imagem, altera-se o seu significado. A escrita dobra a imagem. Gosto de o experimentar”[1]. Desta forma, a proximidade ao público infanto-juvenil (exatamente pela colaboração entre literatura e ilustração) pode tornar-se bastante libertadora, na medida em que recusa a tradição da divisão das artes, tal como a autonomia das mesmas. Por outro lado, a limitação na correlação entre a Banda Desenhada e o público infantil é precisamente essa: a desconsideração da produção para outro público além dessa faixa etária — ou a assumpção de que apenas há demanda e mercado nesse nicho. Ainda assim, por outro lado, pode-se considerar que a Banda Desenhada trabalha da direcção da inclusão do público infanto-juvenil no universo pictórico-literário do domínio artístico sem que seja — sempre — necessária a adaptação à faixa etária. O Maus, de Art Spiegelman, pode ser considerado uma referência fundamental nesse exercício. O romance gráfico pós-memorial (onde, geralmente, também é prática a reciprocidade entre imagem e a palavra) acerca do trauma transgeracional do Shoa — através de uma analogia onde os nazis são representados como gatos e os judeus como ratos — navega entre o relato e o silêncio do pai do autor a respeito do que foi essa barbárie. Apesar de ser uma obra séria e pesada, devido à sua carga alegórica e um tanto ficcional — tal como a memória —, pode se tornar num veiculo perfeito para o relato do Holocausto, inclusive para crianças e jovens. Como Rancière bem esclarece: “o real, para ser verdadeiramente compreendido e pensado, deve ser ficcionado” e apesar dessa ser uma qualidade de toda a literatura (e da arte), a Banda Desenhada tem a particularidade de tornar acessível (e possível) a poesia e a fantasia a toda a gente — jovem, criança, ou iliterado. Seguindo, portanto, esse lema fez-se da Humanidade o tema da 35ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada, Amadora BD. No mesmo espírito, também se evocou e honrou os 50 anos da revolução de Abril.

O Festival desdobrou-se em vários polos entre a Amadora e a Reboleira, sendo o principal — que acolhia grande parte da área expositiva, a zona comercial e a gaming arena — no Parque da Liberdade e os outros na Bedeteca da Amadora (Biblioteca Municipal Fernando Piteira Santos), na Galeria Municipal Artur Bual e na Casa Roque Gameiro, nos quais também se realizaram mostras e exposições individuais. No Parque da Liberdade, no corredor central da nave de exposições —que inaugurava o espaço do pavilhão — recriava-se a rua, por meio de uma experiência imersiva WIP (work-in-progress) e DIY (do-it-yourself). A reprodução de uma rua lisboeta da década de 70 do século passado pelo artista plástico João Arrochinho — SóFachada — partia da série de cartazes A poesia está na rua, de Maria Helena Vieira da Silva, e prolongava ecos de revolução e libertação. Ao longo do corredor que norteava as várias salas expositivas surgiam uma banca de jornais, uma caixa de eletricidade, um banco de rua e canos de esgotos. Idealizou-se, em modo de fantasia, a Avenida da Liberdade nº74, sob a qual se concebia —mediante workshops— a tal poesia: cartazes, pinturas murais e stickers (onde discretamente se compreendia a presença do movimento Casa Para Viver e do Coletivo pela Libertação da Palestina).

Ao longo do corredor, várias reentrâncias, que substituíam portas de prédios, abriam-nos entrada para as 10 exposições aí presentes. As mostras patentes pareciam dividir-se em dois núcleos: um celebratório e outro que poderemos chamar insurgente, onde se compreende a Banda Desenhada como ferramenta de educação e libertação e que, na verdade, também celebra um aniversário, os 50 anos do 25 de Abril. No núcleo “celebratório” podíamos incluir exposições dedicadas aos clássicos: como os 60 anos de Daredevil; Mafalda, uma inconformista de 60 anos; 80 anos de cartoons nA Bola (de nome Elevada Nota Artística); Naruto; e até mesmo um núcleo da Levoir dedicado aos clássicos da literatura portuguesa em BD que este ano celebrava os 500 anos de Luís Vaz de Camões e os 90 da Mensagem de Fernando Pessoa. Apesar de celebratório, este núcleo também tem alguns traços de insurgência, bem com o núcleo insurgente tem também alguma celebração — desde a Mafalda, que continua insubordinada sessenta anos depois; ao Daredevil, um super-herói cego que vê, sinestesicamente, através da audição. Este último, na ótica da inclusão, tem uma exposição sensorial e imersiva em honra da sua condição.

Por outro lado, o núcleo “insurgente” compreendia a origem da fantasia à qual a Banda Desenhada de inicio sugeria: a da classe trabalhadora. A Universidade das Cabras, com desenhos de Christian Lax, reivindicava o poder da educação; Quilombo, Herança e Resistências, de Marcelo D’ Salete, traçava uma retrospectiva da obra do autor brasileiro, que incluía enunciados como a escravidão e a resistência à mesma no Brasil, o colonialismo e o racismo estrutural; a Trilogia de Nova Iorque (Giant, Bootblack e Harlem), do franco canadiano Mikael, explorava a problemática da cidade em eterna construção enquanto expunha as vicissitudes pasmantes dos trabalhadores imigrantes. Por último, Edgar, de Mathieu Sapin, e Elviro, de Paulo J. Mendes, ainda no domínio insurgente, foram, a meu ver, as grandes estrelas desta edição. Mathieu Sapin, entre a memória individual (do sogro) e a cultural traça uma história do que foi, ou do que pode ter sido a diáspora portuguesa, em França, na época do Estado Novo. Paulo J. Mendes, autor da Melhor Obra de Autor Português nos Prémios de Banda Desenhada da Amadora em 2023, com Elviro, homenageia a cultura popular material e chora a sua perda ao retratar os últimos dias de uma velha rede de elétricos numa vila costeira. Este segundo núcleo, onde todas as exposições são relativas a publicações (tal como no primeiro), propõe a importância das estórias e da memória na escrita da História e do relato individual, sob a voz do institucional. Aqui, na Banda Desenhada, também se escreve História, de forma tão meritória como na esfera académica institucional. Posto isto, causa algum dissabor a escassez de representação de editoras independentes na zona comercial, já que o núcleo expositivo se dedicou de tal maneira a publicações provenientes de plataformas independentes. As publicações estão lá, as editoras é que não.

Nos polos exteriores ao Parque da Liberdade prolongou-se o “núcleo insurgente”. Na Galeria Municipal Artur Bual duas exposições festejou-se Abril, através de uma exposição de cartoons de Cristina Sampaio; e outra de ilustrações editoriais, posters, cartazes, cartoons e bandas desenhadas, de Nuno Saraiva. Na Bedeteca da Amadora, Raquel Costa ficcionalizou (não é, afinal, a melhor forma de compreender o real?) 25 mulheres, no Portugal dos anos 70, e obrigou-nos a perspectivar a libertação feminina no tempo, no espaço e na relatividade da cisgeneridade. Na Casa Roque Gameiro distingue-se Guida Ottolini como grande Ilustradora e autora de Banda Desenhada da terceira geração dos Roque Gameiro.

Não queria deixar de mencionar que os concursos de Banda Desenhada promovidos pelo Município também têm espaço no festival. Com entregas de prémios monetários, dirigidos à comunidade escolar, ou a jovens autores pretendem criar oportunidades, estimular a criatividade e promover a Banda Desenhada como ferramenta pedagógica. Em 2024, o Amadora BD também passa a integrar o projeto Comics Beyond – uma incubadora europeia de Banda Desenhada, com o propósito de substanciar a empregabilidade e facilitar o empreendorismo e networking de novos artistas. Resta referir as restantes actividades que fazem desta mostra um festival. Entre debates e lançamentos, também houve workshops, para todas as idades, oficinas de murais, de cartazes e de layouts de páginas de Mangá.

Em nota de conclusão e em modo de preparação para a futura edição, sugiro que explorem alguns dos talentos portugueses e internacionais que o Amadora BD deu a conhecer, bem como recordo o leitor acerca do poder das artes ditas menores onde, afinal, há todo um arsenal onde se guardam os segredos da Humanidade, com toda a variedade, verdade e integridade: “our concern with history is a concern with performed images already imprinted on our brains, images at which we keep staring while the truth lies elsewhere, away from it all, somewhere as yet undiscovered[2].

 

Nota: A autora não escreve ao abrigo do AO90.

 

[1] Blaufuks, Daniel (2008). O Arquivo, The Archive. Um álbum de textos. An album of texts. Lisboa: vera cortês agência de arte, p.21.
[2] Sebald, W. G. (2001) Austerlitz, translated by Anthea Bell. New York: Modern Library, p. 72.

Benedita Salema Roby (n. 1997). Investigadora e Escritora. Doutoranda em Estudos Artísticos: Arte e Mediações, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Mestre em Estética e Estudos Artísticos e Licenciada em História da Arte, pela mesma instituição. Neste momento encontra-se a realizar uma investigação acerca da correlação entre o graffiti (escrita criativa transgressiva) e a construção da esfera contra-pública e proletária, na cidade de Lisboa. Tem colaborado em projetos independentes com fotógrafos e writers, como é o caso do recente foto-livro da artista Ana Moraes aka. Unemployed Artist, Lisboa e Reação: Pixação não É Tag.

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