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Algumas anotações sobre First Step, no espaço Bigger Splash

A tradição romana ordena que, para efeitos de sorte, os convidados entrem no salão com o pé direito. Por descargo de consciência, ou superstição desmedida, este foi um hábito que assimilei. Dia 11 de outubro, ao entrar na exposição que marcou a pré-inauguração do espaço Bigger Splash, assim o fiz. Procurei sincronizar o meu andar para que entrasse em First Step com o pé direito. E, na verdade, reconheço um prazer que deriva do encadeamento harmonioso entre o meu primeiro passo, o título da exposição, e o que esta propõe: um “primeiro passo” na construção de uma montra dedicada ao design e à arte contemporânea.

Sob a mentoria de David Lopes e Joana Pinheiro, o projeto Bigger Splash inicia-se com uma numerosa exposição coletiva. A convite do curador Pedro Valdez Cardoso, 64 artistas de diferentes gerações desenvolveram uma representação – mais ou menos realista – de um par de sapatos. Desde Diamond Dust Shoes (1980) de Andy Wharhol, a A Pair of Shoes (1886) de Vincent van Gogh, e Surrealist object functioning symbolically (1931/73) de Salvador Dalí, a temática do sapato soma incontornáveis marcos da arte moderna e contemporânea. Os sapatos há muito deixaram de ser apenas um objeto funcional. Tornaram-se artefactos estéticos: objeto de contemplação e coleção; um espelho dos movimentos de subversão de classe, género e identidade racial. Esta não é, portanto, uma temática original. Ainda assim, a sua recuperação nesta exposição não deixa de ser pertinente. Esta delimitação temática vem sublinhar a intersecção entre o universo do design e da arte contemporânea. É no trabalho sobre a restrição que a criação artística se revelará, aqui, mais frutífera.

Em First Step, tecem-se respostas múltiplas a uma mesma proposta. Numa primeira instância, situam-se os artistas que elaboram uma representação icónica de um par de sapatos. As peças que apresentam são criadas à semelhança do objeto a que se referem. Disto serão exemplo – entre outras, impossíveis de elencar extensivamente – as peças de Felix Vong, Alice Geirinhas, Dave and Tony e Pedro Cabrita Paiva. Seguem-se os artistas que, embora conservem um contrato de semelhança com a realidade, ensaiam narrativas em torno do que poderá ser um sapato. Servem-se de ready-mades, de materiais e elementos decorativos inusitados e operam distorções de escala. Ana Vidigal, por exemplo, sugere que os sapatos sejam Pantufinhas, pés de dinossauro fabricados em plástico verde. João Motta Guedes, em Just Keep Walking (if you can), utiliza dois blocos de granito para criar uma espécie de chinelo pré-histórico, pesado e profundamente desadequado para caminhar. Mané Pacheco, por sua vez, destaca-se pela utilização de elementos decorativos insólitos e fantasiosos. Em continuidade com um corpo de trabalho interdisciplinar que explora aspetos biológicos, a artista elabora um par de sapatilhas de ballet decoradas com dentes. Estes sapatos remetem-nos já para uma construção fictícia infindável: a quem pertencerão? Serão sapatos-vivos ou sapatos perdidos, saídos do mito folclórico da fada dos dentes?

Numa última instância, encontram-se os artistas que optam por uma representação indiciática. Sem que constituam uma representação física e fiel do sapato, os seus trabalhos estabelecem uma relação de causa ou de contiguidade física com o objeto que representam. Todo o sapato é, em potência, uma pegada e ficará, eventualmente, marcado pelo pé que o calçou. É esta a lógica subjacente a Pé Descalço, de Vítor Serrano, e Naked (path), de Diogo Pimentão. A pegada, índice do sapato ou do pé que a marcou, é suficiente para que possamos especular. Este raciocínio é extensível a Balenciaga Shoes, de Kuril Chto. Nesta peça não reconhecemos um par de sapatos, mas a caixa que alegadamente os contém. O conteúdo da caixa torna-se, então, desprezável para efeitos de representação. A experiência sugere-nos já o que estará no seu interior. E isso basta.

Os exemplos possíveis são múltiplos e diversos. Sirvo-me somente daqueles que me permitem esclarecer e agrupar – ainda que de forma redutora – diferentes tipologias de representação. Ora, se a curadoria desta exposição parece simplificada pela sua temática agregadora, esta multiplicidade de abordagens urge a elaboração de uma linguagem expositiva particularmente cuidada.

Neste sentido, Pedro Valdez Cardoso opta por uma utilização massiva do espaço da galeria. Dispostas pelo chão, as obras formam um percurso labiríntico e, simultaneamente, inauguram um olhar característico da investigação arqueológica. Nesta exposição, a curiosidade ativa um mecanismo de aproximação descendente. Num gesto semelhante ao que realizamos face a um objeto caído, baixamos o olhar, aproximamo-nos e, só então, atentamos em detalhes outrora invisíveis. Em último caso, esta deslocação do olhar tornará os nossos próprios sapatos objeto de contemplação. A peça de João Ferro Martins, composta por dois pequenos espelhos, torna-os parte constituinte da obra. Da mesma forma, também as restantes peças – exibidas sem qualquer dispositivo de proteção – se (con)fundem com os sapatos que as circundam. Forma-se uma mancha gráfica: una, indecifrável e em mutação constante. Diluem-se as fronteiras entre a arte e o corpo que lhe era estranho, numa relação delicada que, enfim, parece condensar o objetivo deste novo projeto.

Com curadoria de Pedro Valdez Cardoso, First Step pode ser vista até 9 de novembro, na Galeria Bigger Splash, em Lisboa.

Maria Inês Mendes (Lisboa, 2004) frequenta o último ano da licenciatura em Ciências da Comunicação – vertente de Comunicação, Cultura e Arte – na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Escreve regularmente sobre cinema no CINEblog, uma página promovida pelo Instituto de Filosofia da NOVA. Recentemente, iniciou um estágio curricular na Umbigo Magazine.

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