Ritornare de Vasco Araújo na Galeria Francisco Fino
A perspectiva da perda de memória acarreta o desgaste da capacidade de uma experiência contínua, de solidez e coesão com os elementos que compõem a nossa relação com o mundo. Circunstância curiosa se pensarmos que o vínculo que estabelecemos com os tempos que nos são virtuais – isto é, com os quais no relacionamos sob condição de um desfasamento – é necessariamente fragmentário. A memória faz-se, assim, por imagens cujos limites nem sempre são claros, além de que será impossível conceber esses clarões mnésicos de modo isolado, concentrando cada linha de tempo o bordado para outra janela, outro corpo, outros modos de pertencer aqui ou ali: salvaguardando-se, desta feita, a ficção gerada – o eu e o outro que nos edifica – sobre o que somos. Numa esfera oposta à clínica, naturalmente investida no bem-estar comum por via de uma elaboração terapêutica sobre o processo da enfermidade, poderíamos pensar na potência criativa que o esquecimento representa. Esquecer para criar, esquecer para avançar. É claro, um quadro demencial, em que o doente apresente estados de confusão mental, nomeadamente decorrente da incapacidade de recordar, descreve uma condição de alheamento, a partir da qual o sujeito enfermo já só poderá estabelecer uma relação, no limite, arbitrária com os outros, não sendo possível, por indiferenciação plástico-afectiva, tomar o real por matéria-prima para a construção de paisagens outras.
A exposição de Vasco Araújo, Ritornare, recupera, não paradoxalmente, o esquecimento, não como falha ou fracasso, mas como intervalo de potência artística. Ritornare é, talvez antes de tudo, mais do que depois de qualquer coisa, alguém que se olha ao espelho. Um rosto é cindido ou duplicado. Para facilitar, falamos em máscara ou persona, mas, veja-se, encontramos-nos aquém ou além do entendimento dicotómico entre verdade e mentira. Uma máscara e um rosto. Um rosto que quando nos chega é já máscara. Mas que rosto é esse? De alguém que regressa? Que chega ao passado? É o de alguém que persiste num presente acirrado exactamente por esse olhar sobre o ombro? Não dependerá a definição dessa identidade a sondagem da nossa própria? Saber de que parte olhamos alguém para que se opere o reconhecimento?
O artista apresenta-nos uma exposição que tanto é uma evocação quanto uma recusa, tanto um cumprimento quanto uma despedida, e a sua dimensão cerimonial bem patente no ritual por que o espectador passa até aceder à figura cindida do artista no ecrã, na última sala, apresenta o cunho fantasmagórico que as celebrações sempre iludem. Note-se que a versão mais actualizada – e em movimento – do artista, à qual acedemos depois de recuperadas uma série de fotografias suas antigas, é-nos dada num ecrã em que surge respondendo a perguntas lançadas por uma voz-off. A figura actual – que é sempre uma aproximação ao presente e, logo, uma ficção do presente – surge ladeada pela sua imagem de há anos, a cantar em mute. A forma do artista mudou consideravelmente. Com uma ou outra fisionomia, é num dispositivo espectacular que o artista se apresenta, ao mesmo tempo que revela como permanente a investigação sobre quem é, o que o define. Somos, mascaramo-nos, continuamente. E só um olhar selectivo, provisório, efémero e insuficiente – isto é, carregado de memória – pode reconhecer a porosidade existente entre o eu e o outro que lança os sedimentos para o desdobrar de um jogo de máscaras que acaba sendo a forma mais franca de registar uma identidade. Impõe-se a pergunta: que espécie de metamorfose, no momento em que vemos a exposição, ignoramos, e que mais tarde reconheceremos claramente como o despir de uma veste para o vestir de outra?
As fotografias do artista enquanto jovem adulto (quatro, ao todo) – mas a gravidade da maquilhagem sobre o rosto de um homem de feições quase pueris, ou candidamente femininas, confunde as idades – são expostas como um arquivo a trabalhar, assim surgindo devidamente firmadas sobre frases de um pensamento sobre o excesso que cada personalidade apresenta, sem nunca conter, e de que a máscara será uma aproximação tão franca quanto residual, provisória. A fotografia de rosto, saudação fantasmagórica do artista sobre si mesmo – ele foi, com certeza, o primeiro espectador da exposição, aquando da sua concepção -, registo concreto do passado, um vestígio, dir-se-á, não contrasta, todavia, com o trecho de canto, na voz de Maria Callas, que ouvimos repetidamente. A certeza e a fiabilidade dos suportes de memória – chegando ao tradicional e já anacrónico gravador – são desmentidas em prol de um caminho que deve ser feito sob o assumir de um re-começo. A imaterialidade da voz de Callas, a curta duração do excerto musical cantado, geram em nós a impressão de pertencermos a um mundo aparte daquele que localiza a Galeria Francisco Fino na cidade de Lisboa, separado da hora em que naquele espaço entrámos, sem relação com a agenda que projectámos para o dia. É o repetitivo da voz, aliada ao invisível potenciador de imagens que a música põe em jogo – pontualidade reiterativa de uma linha da ópera Tosca, de Puccini – que nos desloca do contínuo da temporalidade consensual e normativa para nos apresentar um mundo novo, sujeito às cápsulas imaginárias que farão a arquitectura de um mesmo lugar. E Callas tem tanto que ver com Araújo quanto, afinal, connosco, por servir de elemento e morada – uma pele – compositiva de um mundo alternativo, na exacta medida em que se trata já de uma memória – a vida – em plena elaboração fruitiva.
Por um lado, o movimento é de regresso, Ritornare…, e uma tentação serial própria ao exercício de arquivar subjaz aos elementos desta exposição: veja-se o longo charriot de 8 metros com fatos diversos a cortar a sala numa proposta simbólica da cisão psíquica dos sujeitos criador e receptor. O que propositadamente não é claro é quem arquiva e o que é arquivado, restando, como evidência e vertigem, a confirmação de que aquele que guarda, cataloga e descreve é também matéria de arquivo, representando a eficácia de uma linguagem e de determinadas gramáticas organizadoras, quanto assinalando a impossibilidade de fixar o tempo e qualquer unidade identidade sob o signo e a pretensão da verdade. Por outro lado, importa lembrar que a recordação se trata de uma selecção e, com efeito, de actos sucessivos, e mais ou menos conscientes, de excluir, isto é, de esquecer. A memória como plataforma criativa e esteira relacional é também esquecimento, lapso, lacuna, fenda, intervalo: tal como qualquer enquadramento que nos sirva de ponto-de-vista e ponto-de-partida.
Lembre-se o personagem Funes de Jorge Luis Borges, sujeito atormentado por uma memória total: capaz de apreender todo o detalhe, contudo inabilitado a qualquer forma de pensamento: “Tinha aprendido [Funes] sem esforço inglês, francês, português e latim. Suspeito, no entanto, de que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos”. Poderíamos, com efeito, pensar em Vasco Araújo, em Ritornare – aqui em sentido contrário ao de ritornello, por impossíveis simetria e homologia -, como o biógrafo de Funes que, passada a semana de trabalho, alheado pela rotina e pelos trânsitos de uma vida aparentemente banalíssima – como todas, de alguma forma, o são -, decide olhar a sua imagem no espelho e, por um momento, imagina antever em cada vinco do seu corpo a correspondência positiva do que perdeu. E claro, dá por si, de novo, a escrever mais um conto. E a vida é afinal espantosa, digna de registo e de todas as marchas nupciais. Quem sabe, não dará um bom livro de memórias. De Vasco Araújo ou de cada um de nós.
O que há de verdadeiramente encantador em Ritornare é que quanto mais singular o artista se apresenta – poderíamos falar na criação da personagem de uma diva -, mais humano se torna, o que exige a combinação perfeita entre a clareza de ideias própria de um pensador e um engenho e habilidade próprios de um artífice. A estrela é aquela que pudermos ver.
Ritornare de Vasco Araújo está patente na Galeria Francisco Fino, em Lisboa, até 16 de Novembro.
Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.