Cão no Couro, de Bárbara Rosário, na Casa Azul: a aspereza e a estranheza das superfícies que denunciam as das profundidades
Talvez as sensações mais marcantes que se fazem sentir ao entrarmos nas duas salas da galeria Casa Azul sejam a aspereza e a estranheza transmitidas pelos objetos artísticos, pelos seus materiais, formas e pela sua disposição no espaço, num ambiente frio (mas, por vezes, sufocante) e quase claustrofóbico, graças à ausência de luz natural imposta pelas janelas fechadas. O título da exposição/instalação de Bárbara Rosário está em sintonia com este cenário – sentimos no couro a aspereza, que desvenda já uma indagação sobre a transformação e o impacto sociocultural da pele, e no cão uma estranheza em forma de raiva. A expressão brasileira nordestina – “cão no couro” – caracteriza alguém furioso e revoltado, capaz de cometer uma loucura. É a partir desse “sentimento de inquietação, frustração e raiva com questões que assomam o país, como racismo estrutural, misoginia, desigualdade de classe e suas interseções”, que a artista aveirense “explora a violência da herança colonial através de escultura e instalação”. Nas palavras da curadora Mafalda Duarte Barrela, “[d]a perspetiva individual a uma reflexão sobre o coletivo, as obras da artista surgem quase como um ensaio sobre o conceito de alteridade.”[1]
Este ensaio visual e material, com cinco obras distintas mas com pares que rimam entre si e uma estrutura conceptual comum, denuncia um anacronismo entre os processos históricos de descolonização de comunidades/territórios e uma verdadeira descolonização das mentes, que ainda não se cumpriu e se torna cada vez mais necessária no contexto de globalização da era digital que vivemos hoje. Os seus efeitos denotam-se em marcas epidérmicas, territoriais, culturais e sociais, toldando ainda a construção de identidades e certas correntes de pensamento. Essa construção compreende três conceitos fulcrais tanto para a identidade individual como para a coletiva e para a relação do “eu” com o “outro”: a alteridade (do latim alteritas, em que alter significa “outro”), que pressupõe que, na sua vertente social, o ser humano tem uma relação de interação e interdependência com o outro através do diálogo, do entendimento racional e valorização das diferenças entre dois ou mais indivíduos ou comunidades; a empatia (do grego empatheia, que contém pathos – emoção, sentimento, paixão), a qual está relacionada com a qualidade/capacidade psicológica de entender emocionalmente o outro, através do exercício de se colocar no lugar dele, de pensar sobre o que sentiria e que comportamento teria se estivesse na mesma situação; e o pertencimento ou sentimento de pertença, que impacta na construção da identidade do indivíduo, traduzindo-se no modo como este é acolhido ou rejeitado em determinada comunidade ou sociedade.
Segundo Dionei Mathias, existem três vetores essenciais do pertencimento: o social, o corporal e o emocional. O primeiro concerne elementos agregadores como nação, classe, língua, cultura, região, ruralidade ou centros urbanos; o segundo envolve raça, género, sexualidade, geração e capacidades/deficiência; e o terceiro, a disposição afetiva e o sentido existencial do indivíduo e do seu microcosmo. A interseção entre as três linhas gera celeuma quando se dá uma rejeição causada por um ou mais fatores incluídos nestas – “A sensação de pertencer raramente se torna objeto de problematização, enquanto o indivíduo não experimenta sua negação. (…) Historicamente, atores sociais que se destacam por algum indício de alteridade ou que pertencem a grupos minoritários/periféricos tendem a fazer essa experiência mais frequentemente. Seu esforço de crítica social e de revisão das narrativas dominantes gera questionamentos e deslocamentos nas dinâmicas de acesso e distribuição, desbravando outras formas de organizar a lógica do pertencer.”[2] Quando a negação do pertencimento origina mesmo a não participação na sociedade, “promove várias modalidades de silenciamento. Quando as pessoas são desqualificadas por fatores económicos, religiosos, raciais e de género, esse lugar acaba naturalizando um lugar de subalternidade e de violências (…). É um ambiente que promove um deslocamento, que pode até mudar o valor que o sujeito dá à própria vida” e levar a “um desenraizamento do sujeito.”[3]
Em Cão no Couro, Bárbara Rosário aborda as vertentes social, corporal e emocional ligadas aos conceitos de alteridade, pertencimento e empatia, estabelecendo um paralelismo entre a transformação da pele, sofrida pelo indivíduo, e a transformação da sua identidade individual, que é influenciada pela construção da identidade coletiva e, portanto, ela própria atravessada por momentos de alteridade, em que cada um pode ser o outro de si mesmo. Por sua vez, a identidade coletiva está imbuída dos processos históricos que levaram ao seu molde, cruzando-se com a contemporaneidade. Fá-lo através das potencialidades plásticas de materiais como a espuma de poliuretano em contraste ou confronto sufocante com outras texturas como a do látex e da forrageira ou o ready-made suporte de bicicletas urbano – nas obras R. Recreativo (Sr. Manel) e “Não me descobri negra, fui acusada de sê-la” (Joyce Berth) #1 -, ou a pele transformada que é o couro, em contacto com o que reveste a pele e o couro (cabeludo), cabelo e pêlo sintéticos, e materiais frios e duros como aço e alumínio ou etéreos e luminosos como a eletricidade – em Expiatório (semelhante a um saco de boxe), Exotização / “Hey! Are you from Brazil?” e Dogparking.
Ao mesmo tempo que simula as mutações que o indivíduo experimenta no processo de formação da sua identidade e ao longo da vida, com a sensação esporádica de ser um outro de si mesmo, a artista destaca a alteridade entre seres humanos, que deveria espelhar tolerância, em vez de aversão ou violência. É consonante com as frases de Clarice Lispector: “Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros sou eu.”[4] Apesar das intenções conceptuais em questão, observa-se um paradoxo entre a forte materialidade das obras e o carácter abstratizante dessa mesma materialização dos conceitos mencionados acima nos objetos artísticos expostos na Casa Azul. Sem os respetivos títulos e as pistas conceptuais dadas no texto curatorial, seria difícil apreender as significações implícitas nas obras e o sentido geral da exposição, em relação ainda com o próprio título. Poderá essa contradição ser também um exercício que apela ao visitante que se coloque na pele do outro (neste caso, tanto do artista como de qualquer indivíduo que, sendo seu semelhante, é também “seu diferente”), tentando perceber a sua essência, ainda que possa ser-lhe estranha e quase incompreensível? Poderá traduzir-se também numa metáfora em que as próprias obras representam indivíduos incompreendidos e marginalizados ou impossibilitados de encontrar os seus lugares de pertencimento?
Talvez a resposta a tais questões possa começar a desvendar-se no paradoxo entre a definição de artista emergente, em que Bárbara Rosário se inclui, como a proposta em Portuguese Emerging Art 2020 – “alguém que na sua prática, no seu método, na forma como se posiciona, nos apresenta uma abordagem que se identifica como sendo dissemelhante de grupos, que nos provoca uma inquietude da ordem do estranho, do novo (…). É, portanto, alguém que (…) contribuiu para a metamorfose e circunspeção da arte numa (re)construção transfiguradora da imagem orgânica, plástica e digital, a partir da relação intersubjetiva com as ciências e a tecnologia. (…) Em suma, o artista emergente é alguém que se encontra numa condição de transição, (…) a criar novas práticas que podem ainda não ser entendidas hoje”[5] – e a estranheza ainda sentida por algumas franjas de potenciais públicos, associada a um sentimento de exclusão dos lugares habitados por projetos de arte contemporânea, por julgarem não possuir os conhecimentos necessários à compreensão do que é exposto ou pensarem que aqueles se destinam apenas à visita de elites intelectualizadas, não estabelecendo assim uma conexão com as obras nem compreendendo-as e apreciando-as verdadeiramente. Neste sentido, e apesar de cada vez mais democráticos, os espaços da arte devem sujeitar-se, segundo Mário Caeiro, a uma crítica do próprio campo da arte, combatendo a sedimentação da “divisão cultural (elitismo) que a instituição-arte pressupõe”, de modo a que determinadas comunidades não sejam “marginalizadas da experiência e da racionalidade artísticas”[6].
O desamparo sentido também pelos próprios artistas emergentes – ainda que de forma distinta –, estando a trilhar o seu percurso inicial na busca de um lugar de pertencimento no mercado da arte, poderá, contudo, abrir espaço a um elo de união com aqueles públicos, evitando paternalismos e criando uma pertença partilhada através do poder da arte, pois, como defendia Thomas Hirschhorn, “[c]om isto quero dizer que a arte apenas enquanto tal pode adquirir verdadeiramente importância e ter significado político”, afirmando, ainda: “[n]ão quero que o público perceba. Quero que o público apreenda o poder. O poder da arte, o poder da filosofia!”»[7
Cão no Couro, de Bárbara Rosário, com curadoria de Mafalda Duarte Barrela, está patente na Casa Azul da EMERGE até 9 de novembro.
[1] Duarte Barrela, Mafalda. (2024). Cão no couro (texto curatorial).
[2] Mathias, Dionei. (2023). “Pertencimento: discussão teórica”. Alea, v. 25, n. 1.
[3] Rosa como citada por Estanislau, Júlia. (2023). “O que é o sentimento de pertencimento?”. Jornal USP.
[4] Lispector, Clarice. (1999). Para Não Esquecer. Editora Rocco.
[5] Reis, Jorge, et al. (2020). “Artista Emergente: uma Definição”. Portuguese Emerging Art 2020. EMERGE, p. 29.
[6] Caeiro, Mário. (2014). “A Arte na Cidade”. Lisboa: Temas e Debates. Círculo de Leitores, pp. 358 e 393.
[7] Idem, p. 393.