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O futuro é tecido à mão: Contextile 2024 – Bienal de Arte Têxtil Contemporânea

A algum momento alguém o disse: os tecidos são a pele da terra. Bem vistas as coisas, seja do algodão, da seda, do linho, ou da lã, à sua origem o tecido vem da natureza, filho certo dela mesma. Diz-se que um é extensão do outro, cariz protetor e nutritivo que reconhecemos aos dois, que nos são amparo e alento. Do têxtil à terra, assim se cria um elo do qual sobressai a necessidade de suster e respeitar o meio ambiente. Tecido que, tal como a pele humana, varia imensamente em textura, cor e resistência, cada um deles contando uma história de genes, culturas e afeições.

Em 2024, Guimarães é novamente epicentro da arte têxtil contemporânea, com a nova edição da bienal Contextile. O evento, acompanhado por uma série de conferências, workshops e exposições, entre as quais do país convidado Canadá, do artista em destaque Josep Grau-Garriga, a exposição internacional, as residências artísticas e as propostas escolares nacionais, ergue-se como um vasto tear histórias, intenções e saberes. Artistas de todo o mundo são convidados a explorar a essência do tecido não apenas como material, mas como linguagem. O resultado é um encontro de padrões, formatos e tonalidades, que carregam consigo várias linhagens temporais; cada peça, artéria das memórias e dos jeitos que a principiaram, afinados pela modernidade do ato e do seu pensamento potência, e um entender dos obstáculos no horizonte.

Na 7ª edição, Contextile propõe-se a ser um espaço de reflexão sobre o legado, a sustentabilidade e o futuro do têxtil. Partindo do conceito do “Toque”, a discussão estende-se aos desafios de viver num mundo em rede. Nesta intrincada tapeçaria existencial, em que os fios da vida quotidiana se entrelaçam e reconvertem em novas normalidades, a reflexão sobre a relação entre o têxtil e o tato agiganta-se. O mundo cresce densamente tecido pela tecnologia e alicerça a nossa identidade em máquinas e memórias feitas por máquinas, indiferente à tangibilidade das coisas. “Apaixonamo-nos pelas novas tecnologias, não só porque as máquinas possuem sentidos aumentados e múltiplos (vêm e ouvem ‘melhor’, são mais rápidas, mais fortes, etc.), mas porque controlam as nossas memórias e as nossas emoções”[1]. Espectadores das nossas vidas, o tato enfraquece-se à medida que aumentam realidades cibernáuticas e a inteligência artificial. Não bastasse o isolamento, a avidez pelo progresso e a ambição de maiores níveis de produtividade, promovem o fabrico de materiais sintéticos e tecidos digitais que alteram e/ou diminuem a autenticidade e a profundidade da experiência tátil. A função perece o sensível.

Imaginemos os antigos tecelões de mãos hábeis e eruditas, que vão além do objeto para conservar nas fibras tudo aquilo que não tem nome nem forma. Nesses momentos, o toque e a memória do movimento gravada das mãos tornam-se um ato de devoção, em comunhão íntima com o mundo material. Contudo, este laço sagrado vai-se perdendo, na troca do têxtil pelo efémero, na corrida ao digital e ao ainda não inventado. Olvidamos que do toque se despertam relações humanas e o nosso envolvimento com o mundo. Afinal o que perdemos na busca do abstrato?

No ambiente panóptico desta era, entre o discreto, o perigoso e o essencial, “importa conectar comunidades e territórios da cultura têxtil…”, referem Cláudia Melo e Janis Jefferies, curadores da exposição internacional. É premente repensar o sentido do tato, reinventá-lo para que resista e se afirme neste cruzamento de realidades: a herança do saber analógico individual e a imprevisibilidade criativa do tecnológico coletivo.

Entre as várias perspetivas apresentadas, destaque para a referida exposição internacional, espaço solar da bienal, onde 57 obras, de 50 artistas, se dedicam ao toque de maneiras distintas. Artistas como o francês Arnaud Cohen, ou a polidisciplinar dupla artística húngara Judit Eszter Kárpáti e Esteban de la Torre, exploram a interseção entre a tradição artesanal e a emergência tecnológica. Em Winter Over Europe 7, Circe, Cohen combina uma tapeçaria belga do século XVIII com imagens geradas por IA, enfatizando o contraste material e computacional. Nas entrelinhas, o retrato de um episódio da odisseia de Ulisses, pista que nos é dada no título, referência direta à feiticeira da epopeia que transforma os tripulantes de Ulisses em porcos facilmente manipuláveis. A metáfora é um olhar sobre o presente e o real alienado pelo mundo digital, o qual atua sobre nós como uma droga – peões dependentes e isolados. Em Dung Dkar Cloak, uma instalação interativa propõe um têxtil híbrido, capaz de desdobrar a matéria no domínio visual e sonoro. Uma experiência multissensorial onde o toque do visitante sobre padrões fractais tecidos em jacquard são sonorizados em tempo real, gerando um musical ao vivo, segundo o binómio toque e sua ausência, mais ainda da profundidade desse gesto. Pelo seu pensamento algorítmico, as duas obras atestam as possibilidades e a estética dos têxteis multissensoriais aumentados, como contributo para a compreensão e o desenvolvimento de novas formas de interação.

Pelas mãos de artistas como a palestiniana Lara Salous, ou o ganês Frederick Bamfo, o tecido torna-se uma forma de resistência. No primeiro caso, a instalação What Remains questiona a força do símbolo, ao explorar a interação entre tempo, material, trabalho e os signos contidos no hujrah, o tapete palestiniano tradicionalmente tecido por aldeões e mulheres beduínas. Num desafio à imortalidade do objeto, cuja existência de memórias e identidades transcende a fisicalidade, o tapete que aqui se desfaz, literalmente, reverbera a desconstrução do gesto que o elaborou, da imutabilidade do espaço e do tempo. O que é ser? Quando se deixa de ser? No segundo caso, a instalação Floating House concretiza a transformação de resíduos têxteis em novas oportunidades, relembrando os aterros massivos de roupa usada naquele país. Na forma de tal alegoria, eis a oportunidade de reimaginar o futuro da moda e da produção industrial têxtil.

Outras peças, tais como as de Nikos Iosif, Juliana Ribeiro ou Niina Hiltunen, abraçam a materialidade e iluminam um mundo entre o passado e o futuro, um mundo tangível, cheio de conforto e artesanato, mas também memória. Outras exploram a história do mundo, ou de um povo, como a Serpente da Vida de Nita Monteiro, ou Interactive Sensory Travel Gallery do Colectivo Confundamiento. Ainda nota para a dualidade entre a rigidez e a fragilidade do têxtil, binómios de proteção e vulnerabilidade visíveis em Embracing Limits e Weaving Horizons, de Anna Ill, os quais despertam uma tensão que ecoa efemeridade.

Além deste espaço, destaque para a fusão de linguagens ecléticas e de cariz experimental das principais escolas nacionais com disciplinas de técnicas têxteis, bem como a exposição dos 11 artistas canadianos convidados, a qual corrobora a capacidade plástica do têxtil em superar as fronteiras das artes visuais, das belas-artes e do artesanato, culminando em práticas e técnicas multidisciplinares, onde se harmonizam o pensamento e o gesto tradicional com o conceptual contemporâneo.

De salientar, por fim, a presença de Josep Grau-Garriga no Centro Internacional das Artes José de Guimarães, e a exposição individual Los Hilos de la Memoria, que reúne obras realizadas entre 1972 e 2000. Se, nas suas palavras, a roupa é a nossa segunda pele e a única que podemos escolher, então cada têxtil viveu a nossa vida e aprendeu-lhe os jeitos. Experienciamos e comunicamos através do corpo, da roupa e do têxtil que o cobre, guardando, neste último, memória do que foi e do que há-de vir. Assente na capacidade idiossincrática do artista em transgredir e expandir o que é convencional na tapeçaria, estas obras são a metamorfose do plano e do limitado à presença escultórica, transbordante, cuja magnitude convida o espectador a uma imersão que se quer íntima e individualizada a cada detalhe material. Entre o tangível e o abstrato, o permanente e o fugaz, a experiência é contemplativa. Navegamos por Temps tendre, Record d’infância e a convocatória da inocência e da fragilidade, experiências viscerais que refletem a beleza e a nostalgia do passado. Incorporados nas peças estão elementos da memória e do tempo, algures entre o lembrado e o atual. Hores de Ilum i de focar alude à dualidade entre iluminação e concentração, um possível convite a uma reflexão pessoal sobre as nossas próprias experiências de clareza e dispersão. Segundo uma perspetiva histórico-política, confrontam-se Vell estendard d’aquí e Monument a l’anarquia. A primeira instalação, inspirando uma ligação à história e às tradições locais, materializa a celebração da identidade cultural e desafia-nos a considerar a evolução dos símbolos culturais. Enquanto a segunda, reflexo do envolvimento pessoal do artista com o movimento anarquista, reverbera nos materiais trabalhados, poderosas metáforas visuais para a complexidade desta filosofia: a busca pela liberdade, justiça e estruturas sociais alternativas. Esta constelação medita ainda sobre a fugacidade da memória – Llum de febrer e Diàleg de llum e a resiliência que advém da sua transformação – Anne Frank.

A Contextile 2024 – Bienal de Arte Têxtil Contemporânea está patente em Guimarães até 15 de dezembro. Manifesto à dessensibilização do mundo atual que, pelo têxtil e o tato, nos convida a redescobrir o que significa ser humano hoje.

 

[1] Dyens, Ollivier. (2001). Metal and Flesh. The Evolution of Man: Technology Takes Over. Leonardo Books.

Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.

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