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Todos os Animais na Capela Boa Viagem: ceci n’est pas une chapelle, cette chapelle n’est pas une arche pour Noé

No jogo das sombras chinesas, as mãos manipulam formas e silhuetas, desenhando sombras projetadas sobre uma tela retroiluminada. Este teatro tradicional chinês tem também a sua versão simples, acrescentaria doméstica, onde as mãos, e somente as mãos são protagonistas e se entrelaçam, desdobram e articulam numa dança e emaranhado de dedos, para formar os tais objetos, figuras ou animais.

Todos os Animais de Luís Paulo Costa na Capela Boa Viagem – projeto com direção artística de Hélder Folgado que merece todo o destaque – é uma homenagem a essas sessões de teatro e estórias imaginadas, onde as mãos são muitas e todas as coisas.

E se Platão, na Alegoria da Caverna, nos desafiou a deixar para trás a representação das sombras, abraçando a clarividência dos objectos e os seus contornos, Luís Paulo Costa, em sentido inverso, montou-nos uma armadilha. Entrando na Capela, vemos fotografias de mãos que aparentemente podem formar sombras, por consequência representar animais (e lá fora fica a azáfama da rua e aceitamos o abrandamento do olhar, afinal é um espaço dedicado ao sagrado). Perguntamos: quantos animais são? Nenhum, apenas mãos. Ficamos na dúvida, e numa segunda tentativa, agora colados às molduras, perguntamos uma vez mais, quantos animais são? Nenhum, apenas mãos: pintadas. Levantamos assim outra camada de dúvida, relativa à técnica (óleo s/ impressão jato de tinta s/papel). Das vinte e seis fotografias de mãos que adornam as paredes da Capela, todas são pinturas. Parece confuso, mas faz parte do jogo de representação e do logro visual em que o artista nos pretende envolver. As sombras não estão à vista, mas há um apelo à capacidade do olho para imaginar, para sonhar, no limite para criar.

A série foi criada com a assistência de sua filha Pilar, um laço que a muitos faz certamente lembrar as noites antes do sono, em que as paredes brancas eram tela e a luz rasante da cabeceira era um projetor de narrativas. Pilar fotografou o movimento ininterrupto das mãos de Luís Paulo Costa. As posições ficaram congeladas em múltiplas fotografias. Fotografias depois impressas em escala de cinza e retocadas com pigmentos cinzentos, azuis ou amarelos. Primeiro, na sua versão de quase 200 imagens, Todos os Animais foi apresentada no Museu do Côa, onde certamente o diálogo entre as dezenas de gestos era com a expressão pictórica das pinturas rupestres do Parque Arqueológico do Vale do Côa.

Agora, numa mostra selecionada para a Capela Boa Viagem, estamos em território insular. Uma terra-mãe para sombras e silhuetas (lembramos Lourdes de Castro) e Todos os Animais ganha um outro significado. Sob o olhar atento da figura de Nossa Senhora, o diálogo é em silêncio, e as mãos erguem-se numa oração coreografada. No pavimento e nas paredes veem-se naturezas mortas, tantas vezes celebradas pelos mestres da pintura: num canto há cascas de laranja (Laranja II, 2021), na parede fixam-se casas de caracois ausentes (Meanwhile, 2021). Não são cascas nem conchas, são pinturas tridimensionais (acrílico ou óleo sobre bronze), ou esculturas pintadas. Todo este cenário reforça a névoa em que nos encontramos, deixando em aberto o significado daquele alfabeto gestual, cuja resposta pode estar algures entre um qualquer atlas da história da pintura e o grande dicionário de conceitos fotográficos, mas é tudo uma questão de “representação”.

Todos os Animais de Luís Paulo Costa esteve patente até dia 8 de outubro na Capela Boa Viagem, porém a celebração da arte e cultura contemporânea no Funchal segue-se com a exposição Dois tons de cinza de Alexandre Delmar, a inaugurar dia 21 de outubro.

Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.

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