Sutura-me todo outra vez: Água de Matar Passarinho, Thomas Szott no Duplex Air
A exposição Água De Matar Passarinho, do artista brasileiro Thomas Szott, no atelier Duplex AIR, na Graça, é composta por óleos e trabalhos de tecido cosidos à mão, construindo uma íntima teia de ligações entre símbolos criteriosamente selecionados. A peça central é uma grande colcha de retalhos intitulada Bad at Love (todas as obras de 2024), bordada com entradas num diário sobre amor, desgosto e algumas das primeiras vivências sexuais de Thomas, um adolescente queer. Depois censurou-se a si mesmo, “rabiscando” com um fio as palavras selecionadas, as passagens e até parágrafos inteiros – e, tendo em conta o quão sexualmente explícitas e dolorosas são as anotações sem censura, consegue-se imaginar os detalhes sensíveis que tiveram de ser “rabiscados” a azul.
Contrapondo-se à restrição nominal da colcha temos o surpreendente quadro At first, onde vemos o rabo e os genitais de um homem visíveis por trás, com uma estrela infantil de cinco pontas a delimitar o ânus. Dois outros pequenos quadros retomam o motivo da estrela. Stardom contém apenas uma estrela de cinco pontas em preto, com dois pequenos olhos marejados de lágrimas. A estrela preta converte-se claramente num substituto eufemístico do orifício realçado na obra supracitada. Depois, no quadro On this side, uma mão levanta-se com delicadeza em direção a uma única estrela no céu, com a forma dos dedos a indicar um toque sensual. Outra pintura aborda o tema dos dedos, com uma mão a fletir para trás, nervosamente, os dedos vermelhos e inchados da outra, à medida que somos guiados numa viagem entre símbolos marcantes.
No chão encontram-se garrafas de licor empalhadas, cada uma com as letras do nome do artista. Toda a ligeireza aqui é irónica porque elas representam uma fase escapista durante a qual Szott bebia demasiado – e, num ápice, o título da exposição Água De Matar Passarinho faz todo o sentido. Há também sobre um pedestal uma escultura empalhada de uma máscara de chimpanzé em forma de palhaço, intitulada To put on a happy face. Também aqui parece uma brincadeira, até percebemos que os retalhos lembram a máscara de pele humana usada pelo assassino psicopata do filme Texas Chainsaw Massacre, e que tem palavras no verso: “DO YOU LIKE ME BETTER THIS WAY?” Parecem as letras recortadas e coladas de um bilhete com um pedido de resgate, e lembram uma memória dolorosa narrada na colcha, sobre uma amante que apenas fazia sexo com ele de barriga para baixo – em oposição a outra entrada de diário onde escreve sobre ser virado para todos os lados, com a sensação de não ter peso. Uma pequena e elegante etiqueta na nuca do palhaço diz “Thomas Szott”. Pode ser uma assinatura, mas também uma etiqueta, como se quisesse designar a obra como um autorretrato.
Com efeito, todas as obras evocam, de certa forma, o autorretrato, pois as narrativas da colcha misturam-se com os símbolos das pinturas para nos mergulharem no mundo interior do artista. Consideremos Jealous all the time, uma pintura verde de dimensões modestas que representa um rapaz nu, de cócoras, com o rosto envolto em sombras, exceto pelos olhos que cintilam ameaçadoramente na escuridão (a lembrar a estrela chorosa em Stardom). Não precisamos de nos interrogar sobre o que está a pensar: está nitidamente verde de inveja. A beleza deste espetáculo é tal que o artista nos faz sentir sem gravidade, à deriva, sem esforço, entre uma associação e outra, como pássaros ao sabor do vento – até que, subitamente, embatemos numa vidraça e nos despenhamos outra vez na terra.
Água De Matar Passarinho, de Thomas Szott, no Duplex AIR, está patente até 25 de outubro.