Interlúdio de Martîm na Galeria AMAC
Uma bóia, em tons resplandecidos, emerge de um mar, um mar picado, de pequenas ondas.
O tema é o verão da infância de Martîm. Um verão tardio e dourado, em modulações tonais silenciosas, enleadas em melancolia e cores tutti-frutti.
Porém, parece morar, nas interpelações da água, entrecortadas por brilhos e sombreados ondulantes, um prenúncio de inquietação, uma vaga anunciada, que se aproxima, invasiva e ameaçadora, de que não é possível evadir-se.
Outras pinturas prefiguram jardins, rodeados de vedações naturais, onde piscinas, de tons de azul, alumiam as árvores e os tons de céus rubros, em agitação.
A felicidade parece transitória. A serenidade, ilusória, ou difícil de recuperar. Os símbolos representativos de estatuto, ou de luxo, que outrora asseguravam o bem-estar eterno, perecem agora carcomidos pelo tempo e pela matéria ferrosa corroída. Temos apontamentos arquitetónicos, como escadas em ferro, de piscinas vazias, que apresentam um nível de deterioração elevado. Ao longe, nas pinturas de Martîn, o horizonte é conseguido por meio de manchas inquietas em tons quentes e incendidos.
Os exemplos sucedem-se, variando as cores e os elementos. Um miradouro, retilíneo, encimado por uma estrutura com um chapéu-de-sol, de cor rosa, e um assento tubular, mitigam a memória, pelas recordações cândidas e etéreas que extraem da infância.
Outras paisagens marítimas sugerem felicidades extintas, incitadoras de futuros passados, e esperanças que resultaram vãs. Estas obras evocam sonhos modernos, alquebrados e desacreditados, desencantados. A promessa do desenvolvimento, a crença cega na tecnologia e a pretensão de ordem, superioridade sobre os outros seres e controlo humano sobre tudo revelaram-se devastadoras para o futuro da humanidade.
As pinturas de Martîm que compõem Interlúdio, presentes na galeria AMAC, no Barreiro, enleiam-nos nas eternas tensões entre natureza e arquitectura. O curador da exposição, Frederico Valente, dá-nos a conhecer pinturas em tela e azulejos que evocam paisagens marítimas em confronto direto com construções em betão. Porém, recorda-nos, pela sua descrição, o modo como essas construções “alimentam o imaginário e a estética de olhos postos no oceano”[1].
O “ato de criar”[2], acima de convenções, estabelece “uma possibilidade de espontaneidade”.[3]
Constitui, no caso da pintura, um “acumulo de experiências práticas”[4]. Requer tempo para concretizar um corpo de trabalho que combine “equilíbrio entre intuição, praxis e conceito”[5].
Num jogo entre “mancha e sinal”[6], as “linhas conferem identidade ao fundo”[7]. E observamos o modo como Martîm desvela as pinceladas “sobre superfícies raiadas de nuvens que representou”[8] ou manchas veladas sobre o céu.
Algo se passa dentro, como as piscinas, ou os lugares “vigia” nas praias, mas também o acontecimento realiza-se no fundo da composição, que o artista trabalha com igual atenção.
Temos fundos quentes, rodeados por orlas cinza. Um pôr do sol que contrasta com um verde fluído do mar. Mais mar e montanha rosa. Ilhas verdes amareladas que se fundem com o laranja do firmamento.
Os azulejos, dispostos de modo irregular, sobre a parede, inauguram algo novo. Libertos da grelha tradicional, vão pontuando a galeria e robustecendo a ideia de pintura de paisagem, mas num outro suporte que não o da tela.
Interlúdio, de Martîm, com curadoria de Frederico Vicente, está patente na Galeria AMAC até dia 27 de outubro.
[1] Palavras de Frederico Vicente, curador da exposição Interlúdio. Folhas de sala da exposição.
[2] Oliveira, A. P. (2022). “O cérebro dos dedos das mãos”. A pintura é uma lição. Coord. António Quadros Ferreira. Edições Afrontamento, p. 51.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] Molder, M. F. (1999). Matérias Sensíveis. Relógio D’Água, pp. 14-15.
[7] Ibidem.
[8] Ibidem.