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Carlos Nogueira na Brotéria: “juntar à pedra ferro e vidro”.

Carlos Nogueira ocupa a galeria da Brotéria com: paisagem, densidade e memória. Estes conceitos são também títulos e a definição para as duas peças presentes em ambas as salas. Comecemos pela primeira sala e a primeira peça, um preâmbulo para a sequência que se segue.

Paisagem de mandar é um postal datado de 1980, lê-se no verso. Também no verso, numa caligrafia cuidada está escrito “paisagem de enviar” e rasurado “paisagem de viajar”. A frente do postal é uma colagem com imagens de céu: três frames consecutivos da mesma nuvem. Nuvens que não conhecem limites ou fronteiras terrenas. E o céu tem uma presença significativa no corpo de trabalho de Carlos Nogueira, como adiante veremos.

Seguimos para a segunda sala, onde uma sequência de catorze caixas, mais uma, adensam agora a narrativa. densidade. e memória é a resposta de Carlos Nogueira quando desafiado a interpretar a Via Crucis. O caminho da cruz é possivelmente uma das temáticas chave da iconografia cristã e também um dos temas mais ilustrados e revisitados. São catorze as cenas que constroem um trajecto entre a condenação de Jesus e o seu calvário. Vimo-lo representado em diversos trilhos por todo o território e à margem da sua denotação, é um exercício meditativo e introspectivo que envolve caminhar (viajar) pela paisagem.

Curiosamente, Nogueira recorre à ausência de figuração, através de um black mirror para formalizar as várias etapas. Talvez tenha sido inocente a opção do artista (ou talvez não), mas bem sabemos como o ecrã negro está presente na sociedade contemporânea. Portanto, as catorze peças vivem da simplicidade de vidros pintados e emoldurados por caixas de ferro polido. Está implícita a linguagem do cinema, tanto reconhecível no postal, na repetição das nuvens, como na cadência de caixas, que lembra a imagem-tempo e a imagem-movimento da película ou o storyboard prévio. O que conforma um apelo do artista para um gesto no espaço, um ímpeto ao movimento, ao percurso pela sala, observando o nosso vulto reflectido em cada vidro, em cada reflexo. As caixas estão à altura dos nossos olhos, imprimindo uma certa horizontalidade na direção do olhar, diria humanidade, por certo, diferente da verticalidade do céu que nos convida a olhar para cima.

Já no fundo da sala, e acelerada pela configuração “funil” da planta, surge uma caixa branca. Exatamente igual às anteriores, porém a pintura ilumina o espaço. Lembramos as fotografias de telas de cinema brancas de Hiroshi Sugimoto e pensamos, talvez seja a ressurreição de Cristo, mas ocorre-me uma questão para o descrever: “What do you mean by lights and darks?”. Wim Wenders responde no minuto 73’’45’ do seu filme O Estado das Coisas (Der Stand der Dinge, 1982): Nature, everything is just lights and darks. (…) the only way to paint it is by putting the lights against the darks (…) everything is lights and darks, shadows and lights. Do you see the shore is a light, and in between the shore, the breakers is the dark. And that’s how it takes form.

densidade. e memória de Carlos Nogueira está patente na galeria da Brotéria até dia 16 de novembro. A exposição tem também uma extensão na mais recente edição impressa da Umbigo #90 – Práticas Celebrativas – um ensaio visual dedicado ao Céu, com trabalhos de 1983 e um poema.

Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.

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