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Saga de Bernardo Simões Correia no Sismógrafo

Como pode o desenho pensar a sua dimensão imagética? Como pode a imagem pensar e estender dimensões temporais? Como pode o espaço ser um território de pensamento sobre a imagem? Estas são algumas das questões que a exposição Saga de Bernardo Simões Correia (1980), com curadoria de Ana Anacleto, nos levanta, e cujas respostas, como num jogo, são descobertas e reveladas à medida que percorremos a mostra. Questões que nos são propostas e que se tornam visíveis num território utópico e ilimitado, concebido pela curadora e pelo artista ao definirem um espaço de liberdade onde as obras estabelecem diálogos surpreendentes e inusitados, sempre numa lógica de encontro. Obras que, ocupando diferentes pontos do espaço, movem-se e falam entre si, traçando conexões, ecoando e libertando reflexos, numa convocação contaste de humor lúdico, surpresa e descoberta no espectador.

Como já nos habituou, a prática artística de Bernardo Simões Correia afirma-se numa relação decorrente das questões da imagem, cuja manifestação formal e conceptual ultrapassa tipologias disciplinares, abrangendo técnicas e materialidades diferentes, conforme testemunham as obras que compõem Saga, a primeira apresentação individual do artista no Porto. Perante o trabalho de Bernardo Simões Correia, recordamos o legado e o estudo de teóricos e historiadores de arte do século XX como Aby Warburg (1866 – 1929); Erwin Panofsky (1892 – 1968); Fritz Saxl (1890 – 1948); Ernest Gombrich (1909 – 2001); John Berger (1926 – 2017); Hans Belting (n. 1935); Didi Huberman (n. 1953) e José Gil (n. 1939), a propósito da sobrevivência das imagens e formas, ao entendê-las enquanto realidades vivas que viajam no tempo e que se podem metamorfosear. Atravessando tempo e espaço, reconhecemos a dimensão espectral das imagens que o artista convoca para o seu universo, imagens que – como fantasmas – remetem e evocam tantas outras possíveis, ao apropriarem e (re)contextualizarem signos visuais – clássicos e contemporâneos -, criando sucessivas camadas de informação e de leituras, num processo inacabado e em constante mutação.

Atraídos pela profundidade e iluminação do Sismógrafo, entramos no espaço expositivo cujo comprimento e horizontalidade nos conduzem a duas impressões digitais em tela náutica e de grande formato (100×200 cm). O impacto visual e estético da obra, com a sua disposição longa e aberta que se expande pela parede do espaço expositivo, desperta a curiosidade do visitante e mergulha-o numa experiência imersiva proporcionada pela sequência ritmada e convulsivas de imagens que, sem ligação aparente, originam um conjunto atemporal. À medida que observamos as imagens impressas, reconhecemos algumas já recorrentes no trabalho do artista e às quais se associam outras, numa ampliação do seu léxico iconográfico. Referências diversas que vão desde a mitologia egípcia à cultura judaico-cristã, passando pela literatura, inspirações com que o artista se cruza e absorve, transformando-as em desenhos e que posteriormente assumem aparições várias. Sarcófagos; palmeiras; tigres; olhos que nos observam; corpos em queda; vultos de pessoas e de animais; o tronco nu de uma mulher; baleias; fogo; a representação de Anúbis como cão, deitado sobre um túmulo numa invocação de proteção (…) são alguns dos desenhos impressos nas duas telas e que como num jogo, à medida que avançamos, se materializam no conjunto de esculturas em latão que povoam o chão sala. O interesse de Bernardo pelos mecanismos de reprodução – dos meios analógicos aos digitais, da bidimensionalidade à tridimensionalidade – manifesta-se no encontro do espectador com a instalação na qual desenhos e esculturas se complementam. Não obstante o contraste entre materiais – da leveza das telas nas quais observamos o gesto livre, espontâneo e rápido das impressões, em contraponto com a solidez das dez peças escultóricas de latão -, há um diálogo constante e reconhecimento entre as obras que compõem a instalação. Numa oposição entre peças de chão e de parede, entre materialidades e cores diferentes, deixamo-nos surpreender e divertir pelo jogo de ecos que o conjunto revela.

Habilmente dispersas pelo chão, dispostas em frente às duas impressões, as esculturas de dimensões variáveis e de cor dourada como pequenos tesouros intrigam-nos, levando-nos a caminhar por entre as mesmas, convidando-nos a uma interação. À medida que as contemplamos, num ato de descoberta das imagens e do seu campo referencial – um sarcófago, uma baleia, uma máscara, um tigre -, percebemos que têm a ver com os desenhos impressos, num reconhecimento dos mesmos, revelando-se a investigação plástica do artista sobre possibilidades de suportes para a fixação dos seus phantasmas. Complementando o discurso construído, deparamo-nos com a última obra presente na exposição, um pastel de óleo s/contraplacado de reduzidas dimensões, cuja vivacidade das cores e carater naïf nos despertam a atenção. Um olhar atento sobre a obra revela-nos uma cena que reconhecemos de um dos segmentos da impressão digital, imagens que, como espectros, se apresentam agora numa nova escala, técnica e cor.

Fazendo jus ao título da mostra Saga, enquanto narrativa de dimensão épica, as criações de Bernardo Simões Correia em exibição no Sismógrafo proporcionam, numa lógica de encontro e de olhares, o contacto entre o espetador e as imagens como um momento de descoberta. Promovendo uma reflexão sobre o modo como construímos imagens na contemporaneidade e através do caráter fantástico das obras presentes em Saga, o artista dá-nos a conhecer o seu olhar, ao fixar, como refere Ana Anacleto, “o momento de admiração, o momento mágico da criação e das suas visões imaginadas”. Sagas de histórias, de objetos e de imagens que se cruzam num universo mitológico e de histórias, criando narrativas e revelando-nos a premência de fazer do artista em desenhos que se tornam impressões e esculturas.

Um encontro com a imaginação de Bernardo Simões Correia e da sua procura por materializar imagens, para ver no Sismógrafo até 2 de novembro.

Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.

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