Manifesta 15: o que pode uma bienal?
O que pode uma bienal quando o centro parece acumular uma força centrípeta tal, que tudo o resto, nas periferias industriais, sociais e residenciais – muitas delas entregues a um balanço político instável –, parece solto e sem propósito? A Manifesta 15, em Barcelona, propõe-se pensar as relações de forças dentro das regiões metropolitanas, um desafio que tem tanto de político como de histórico, de artístico como de institucional, de urbano como de marginal. É um palco negocial, de bastidores, conquistas e fracassos, que antecede largamente os meses anteriores aos da bienal. A Manifesta 15 é um diagnóstico sobre um território e uma visão de futuro, que ousa construir e cimentar diversas práticas críticas durante todo o processo criativo e para lá dele, não muito diferente de uma relação diplomática entre municípios, governos autónomos e centrais.
Mas “Barcelona” é, aqui, um lugar de passagem.
Na verdade, a Manifesta 15 é uma imensa rede de cidades e municípios que se juntaram em torno desse centro para mostrarem novos modos de administração do território, de fazer diálogos, de debater instâncias políticas e de construir algo que extravase o célebre binómio moderno Centro/Periferia. Está-se perante um evento polinuclear, em que política e arte parecem ocupar uma mesma missão (isto, se arte tiver de ter uma missão): negociar o tempo e o espaço do futuro próximo da zona metropolitana de Barcelona, plena de conflitos a várias escalas e, no entanto, com uma reputação industriosa para os resolver criticamente, constituindo simultaneamente um método pedagógico e um grande laboratório político, arquitetónico e artístico. Barcelona é, portanto, um hub da hipermodernidade, que distribui, conecta, agencia, espalha e força novos fluxos, novas centralidades, novas valências, atendendo também às realidades específicas de cada bairro e à diversidade implícita em cada um deles.
Neste contexto, toda a região metropolitana constitui uma oportunidade de ensaio e experimentação política, contornando divergências sem as escamotear, negociando pontos de encontro, debelando conflitos e dirimindo qualquer extremo que não encontre eco cosmopolítico na multiplicidade de universos que compõem não só esta metrópole, mas também todas as outras europeias.
Dois casos paradigmáticos parecem sintetizar a missão da Manifesta: o conflito gerado entre a expansão do aeroporto e a Casa Gomis; e a requalificação daquele que será, por ventura, um dos mais assombrosos legados industriais do século passado, conhecido por Les Tres Xemeneies. Territorialmente opostos, cada um em diferentes pontas da metrópole, este locais sinalizam Barcelona como um ponto charneira, um elemento articulador ou mediador de disputas, vontades e incertezas. São eles que estruturam o conceito por detrás das muitas particularidades e teias especulativas da bienal. Como pano de fundo, o turismo de massas; o Capital a abocanhar sempre um pouco mais da capital catalã; o independentismo; o sufoco do calor e da seca, cada vez mais frequente, cada vez mais presente.
A Manifesta é, deste modo, um hiperobjeto tornado forma, matéria, modelado pela informação não visível (agora palpável), conformado pelo éter temporal e espacial do passado e do futuro, ambos comprimidos e sobrepostos em corpos inalienáveis.
São três, os clusters que estruturam a bienal: Balancing Conflicts, nas cidades a sudoeste de Barcelona; Cure and Care, nas cidades a norte; e Imagining Futures, nos entornos industriais a noroeste. Dirigida por Hedwig Fijen, com a mediação criativa de Sergio Prado (no estágio preparativo da bienal) e Filipa Oliveira, esta será, por ventura, uma das edições mais ambiciosas e complexas de gerir. A figura do curador é preterida à do mediador, que é destacada e preferida, justamente porque ressignifica uma atividade que, ao entrar na lógica voraz e superficial do capitalismo cultural, se tornou vazia. Numa rede de 12 concelhos, cada um com o seu representante local, este foi um modo de assegurar uma correta e eficaz implantação dos projetos no território, envolvendo profissionais da cultura que conhecem as particularidades e idiossincrasias de cada espaço, bairro ou cidade. Porque é esse, sublinhe-se, o desafio, e essa é a verdadeira matriz cultural europeia e itinerante da Manifesta.
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O aeroporto de Barcelona é um cosmos imenso – uma cápsula do capitalismo neoliberal globalizado. Expande-se de década para década: mais terminais, mais parques de estacionamento, mais serviços, mais lojas, mais experiências, num daqueles não-lugares indiferenciáveis, iguais a tantos outros. Um espaço que requer mais espaço, que precisa de crescer mais e mais, porque o que não cresce estagna, e o que estagna afunda, compromete a economia regional e, por conseguinte, a economia nacional. Mas essa expansão compromete a biodiversidade num dos raros parques naturais da zona metropolitana de Barcelona, o Delta, e a memória histórica daquele que foi o centro nevrálgico da elite cultural vanguardista catalã, a Casa Gomis.
Construída por Antoni Bonet i Castellana, em contacto próximo com os proprietários da casa e do terreno que a circunda, a Casa Gomis é um exemplo perfeito da arquitetura moderna catalã no uso que faz dos materiais industriais, do betão, e do planeamento funcional, mas poético, das divisões. As obras de arte ocupam uma presença discreta, como se há muito ali estivessem e pertencessem à atmosfera da construção. As personagens fotografadas, as criaturas esculpidas, os artefactos e as instalações que se agregam em estruturas mais ou menos híbridas parecem testemunhar, no silêncio, um conflito há muito esperado. Há algo de ternurento, nos Cani de Chiara Camoni; de ominoso, em No shelter from the storm de Anca Benera e Arnold Estefan e em Russian Missile de Ira Lupu; de imenso, em Parliament of trees de Elmo Vermijs e em Para construir un jardín necesitamos de un trozo de tierra y la eternidade de Enrique Ramírez. O diálogo com a Natureza faz-se dentro e fora da Casa, com as obras de Fina Miralles, Moisès Villèlia, Larry Apichatpong e Ruta Putramentaite, enquanto que ru k’uux kaaj / corazón del cosmo, de Manuel Chavajay, parece recuperar a imensidão cósmica d’A Poética do Espaço de Bachelard – cada casa é um universo de vozes, espectros, corpos e memórias inscritas em paredes, janelas e portas, cantos e recantos, armários e gavetas.
Fazer deste um dos lugares cimeiros da bienal, dentro do cluster Balancing Conflicts, é lembrar a importância da proteção do património face à voragem ciclópica do progresso neoliberal. E, portanto, a expansão das construções aeroportuárias encontrará aqui um lugar habitado pela história, pela arte, cujo poder galvanizador é frequentemente subestimado.
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O cluster Cure and Care é um momento introspetivo. Talvez seja essa a razão para a exposição de tantas obras isoladas, como se cada uma reclamasse um silêncio e um diálogo apenas com o espectador e nada mais. O complexo episcopal de Ègara, o mosteiro de Sant Cugat e o Museu de Ciências Naturais (MCNG) são disso exemplo, ao conduzirem as obras e a experiência estética a uma ascese purificadora.
Em Ègara é a obra de Buhlebezwe Siwani que se destaca pela candura e ternura das esculturas em sabão verde. Isaziso 1996 é uma ode à maternidade e às várias gerações que compõem uma família. Circundamos a obra como satélites, testemunhando uma cena doméstica de amor, cuidado e conforto. Na luz difusa da igreja funerária de Sant Miquel, dentro do cruzeiro, a escultura ganha uma centralidade dignificante entre a vida e a morte.
Nos pequenos nichos sagrados do altar-mor, as esculturas de Seyni Awa Camara substituem-se aos signos e símbolos sagrados do catolicismo. O que parece ser uma série de criaturas míticas é na verdade uma representação das forças e corpos sobre-humanos da maternidade. Foi esta a forma que Camara encontrou no seio da sua comunidade para um lugar de pertença, quando a artista se deu conta de não poder ter filhos. A representação e imortalização de um momento fugaz, mas intenso, na vida das mulheres com quem partilha o quotidiano deu-lhe propósito, ao mesmo tempo que servem de lenitivo para um trauma biológico, numa sociedade em que a maternidade é o objetivo primeiro da mulher.
Sant Cugat representa um lugar de introspeção, uma moratória aberta à capacidade regeneradora dos laços sociais e humanos. O têxtil ganha aqui uma presença dominante com as obras de Marie-Claire Messouma Manlanbien, Fanja Bouts, Buhlebezwe Siwani e radio SLUMBER. As tapeçarias, os nós, os entrançados e a leveza dos tecidos aludem inevitavelmente a uma prática colaborativa feminina e feminista, tão antiga quanto os mitos clássicos, quando a memória, o tempo, a cura e o trabalho (re)produtivo eram do domínio da mulher e tinham a representação de mulheres nas prosas e poéticas mitológicas.
No entanto, há algo de profundamente espiritual e onírico que atravessa todas as obras. Um sono langoroso parece envolver cada peça numa ambiência convalescente, como se recuperassem das feridas e mazelas de uma existência dura, vil. É uma paisagem sonhada, imaginada; remanescências de personagens arrancadas ao escuro da noite e da morte, sujeitos femininos que zelam pelos que partiram, como Restos de sueño de Bea Bonafini; fábulas encantadas e de empoderamento, como Banquet de Marianna Simnet; visões delirantes, como as que Diana Policarpo descreve em Liquid Transfers, recordando também o papel da mulher na medicina tradicional; nebulosas coloridas, evanescentes, como Immolation de Judy Chicago.
O cuidado pela natureza e os espíritos que habitam, a sua forma primitiva e telúrica capaz de gerar formas e objetos inesgotáveis, está presente no MCNG. As peças de Hugo Canoilas parecem ter sempre pertencido ao jardim do museu. São objetos estranhos, artefactos recuperados de uma ficção qualquer, mais ou menos minerais, mais ou menos sintéticos. Canoilas entrega as suas obras à inteligência e ecologia da Natureza e dos seres não-humanos, vota-as ao risco, ao imprevisto e às vidas microbianas que vivem nos lagos e entre as plantas. Outra pseudoarqueologia ou xenoarqueologia é ensaiada por Eva Chettle, que ocupa as vitrines e expositores do museu para colocar ao lado do espólio existente criaturas compostas por diversas orgânicas. O animal funde-se com o humano, o mineral com o vegetal, carapaças com dentes, chifres com espinhas dorsais. São criaturas que povoam as especulações científicas da literatura e da cultura moderna de massas, entre o assombro e o terror. Por seu lado, Jonathas de Andrade lança-nos na catástrofe ambiental, nas complexas dinâmicas das florestas e nas difíceis relações que partilhamos com os animais, seres frágeis que deviam estar sob o cuidado humano.
Neste cluster é importante ainda sublinhar a performance de MASBEDO num dos refúgios que sobreviveram à Guerra Civil Espanhola. Ghost soldier (gabbing away) funciona como uma catarse, uma libertação face ao medo da guerra, da morte e da vida contada entre bombardeamentos. É uma rave num bunker, afinal. As batidas substituem-se ao som dos disparos e das granadas. Os corpos agitam-se freneticamente na escuridão, até caírem no torpor do cansaço, do esgotamento. MASBEDO recorda os casos reais de bunkers que servem de palco para festas de música tecno, de intervalos entre o sofrimento passado e o que há de vir. A realidade é outra, debaixo do solo. Os subterrâneos reconfiguram a nossa relação com o mundo, com as comunidades, com a vida e a morte. Este é outro tipo de cura. Mais placebo que panaceia, mais escapismo que confrontação – o possível, quando a queda é inevitável.
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Por último, Imagining Futures é seguramente o mais político dos clusters, não só pela seleção de obras, mas também pelos espaços que as acolhem. A Prisão de Mataró é o primeiro caso de cárceres desenhadas segundo o dispositivo de panótico, até ser desativada nos finais da década de 1960. Mataró, recorde-se, foi o destino trágico para muitos opositores ao regime franquista. A investigação de Domenèc é um arquivo que compila diversos casos de estudo da arquitetura ao serviço da punição e da vigilância, de extrema utilidade para os vários regimes fascistas e autoritários que governaram a Europa do século XX. Este testemunho histórico, feito de celas e espaços tortuosos, serve de base para o futuro do edifício, convertido em 2022 para um centro cultural, o M|A|C, por forma a debater, quem sabe, o futuro de espaços semelhantes, e fazer desse palimpsesto de usos um lugar para a refundação democrática e humanista.
Ainda em Mataró, é impossível deixar-se de falar desse parasita insuflado de Eva Fàbregas, que penetra e irrompe as superfícies da antiga prisão. Exudates tem algo de visceral, como se as entranhas humanas tivessem sido expostas, neste que é simbolicamente um espaço fantasmagórico, de violência e resistência. Songs for dying, de Korakrit Arunanondchai, representa também um momento emocionante – uma elegia especulativa que o artista filmou para honrar e recordar o pai, assassinado no massacre de 1948 de Jeju, na Tailândia. A cela transforma-se num local irreconhecível – um limbo, um memorial, um lugar hiperconsciente em que o luto se faz arte e a arte se assume catalisadora da transformação.
Mas tudo converge num ponto.
Tudo converge nessa estrutura imensa, mastodôntica, que rasga a paisagem de Barcelona e se lança nos céus como ícone da era industrial e da superação da natureza pela humanidade.
Les Tres Xemeneies é um dos últimos monumentos da industrialização europeia e uma das mais recentes incógnitas sobre a era pós-industrial e tardo-capitalista que o continente atravessa. Sem programa para o futuro, incerto do seu destino final, Les Tres Xemeneies ocupa simultaneamente uma nostalgia perdida e uma vontade de progresso e mudança entre os catalães, sobretudo entre os habitantes de Sant Adrià de Besòs.
Quando convidado para a Manifesta 15, a solução de Mike Nelson parecia simples: designar Les Tres Xemeneies como uma escultura. Esse mero ato de redesignação bastaria para se mudar a perceção que se tem sobre este edifício e respetivo entorno. Ao mesmo tempo complica o entendimento que se tem sobre o mesmo e toda a futuridade daquela região. Não seriam necessários projetos de renovação, reabilitação ou reconversão; não são necessários projetos para um novo centro cultural, um novo centro de congressos, uma nova iteração na economia da atenção e da intelectualidade. Esta é uma escultura sem possibilidade de exploração; um testamento à elementaridade da natureza sobre o artifício humano; um legado sobre o betão, sobre a materialidade moderna e ecocídio que representa, tão bem elucidado por Ansel Jappe em Béton. Arme de construction massive du capitalisme; um objeto que resiste, simplesmente, e permanece inalterado na paisagem e nas margens do Besòs; uma estrutura sobre as muitas e sinuosas estruturas do poder, falocêntrica, rival de outras semelhantes e não muito distantes como a Sagrada Família de Antoni Gaudí ou o pénis luminoso de Jean Nouvel, nas Glòries.
No interior, há um claro sucesso no modo como os artistas e os mediadores encaram e ocupam o lugar, tentando um difícil mas curioso diálogo entre peças, massas e gravidade. Esta é, por definição, “a exposição” que a Manifesta nos tem habituado, em que a textualidade e a discursividade conceptual das obras jogam lado a lado com a materialidade e a sensorialidade.
Carlos Bunga, Kiluanji Kia Henda, Julian Charrière e Ugo Schiavi conjugam uma espécie de apocalipse – não no sentido de fim-do-mundo, mas no sentido originário do termo: revelação. São revelações sobre a Natureza, a fragilidade, as camadas geológicas e biológicas da terra, todas elas bastante diferentes, mas que assentam numa profunda dialogia. Entre a pintura e a instalação, La irrupción de lo impredecible, de Carlos Bunga, é um trazer à superfície a toxicidade dos solos. Os casulos pendem das alturas aguardando a metamorfose das espécies futuras, neste campo sintético e sulfuroso. Kia Henda e Charrière investigam o poder do fogo. Mas se no primeiro é o drama da perda, de uma floresta calcinada que se tenta reconstruir com o engenho humano, no segundo é o deslumbramento purificador, gerador e mitológico do fogo que sobressai. No que parece ser uma cápsula capaz de resistir a todos os cataclismos, Schiavi especula sobre a vida vegetal do futuro, que subsiste com o apoio da tecnologia e da simulação dos fenómenos naturais, tão imprescindíveis para o crescimento.
Há ainda um ativismo claro nas obras de Maya Escher e Claire Fontaine. A água e a terra são matérias base não só da obra de Escher, mas também condição fundamental para pensar o território alentejano. Há uma paixão na voz quando fala da comunidade em que vive e a atomização das diversas nacionalidades que a compõem. No entanto, Escher não se considera uma ativista. Essa é uma palavra, refere, que tem vindo a ser usada recorrentemente para desacreditar o discurso ambientalista. Os desenhos de lama sobre têxtil esvoaçam ancorados a canas; excertos de poemas emprestam uma fala ao saber ancestral e local; e tudo parece ganhar vida e agência – uma obra que parte da ação humana, mas que se liberta dela para existir plenamente. Em Claire Fontaine o ativismo é assumido e reporta-se aos direitos laborais das mulheres e à posição que ocupam no seio do capitalismo global. Quando as mulheres param, as máquinas também param. As mulheres carregam no ventre a hipótese de uma greve que complica a economia reprodutora indispensável ao capitalismo e ao mercado.
No piso mais elevado da nave, lençóis brancos esvoaçam. Não há janelas nesta escultura/fábrica/monumento. As correntes de ar insuflam, contornam e abanam a obra de Asad Raza. Não sendo a proposta nem a solução mais original do conjunto, é, no entanto, um momento impressionante, suave e leve, em pleno contraste com a rigidez do edificado. É uma dança coreografada pelo vento trazido por esse mar salgado e necrófilo chamado Mediterrâneo; é uma entrega puramente sensorial à arte, um abandono bem-vindo, que nos embala e apazigua o espírito.
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Das muitas dezenas de artistas, muitos ficaram fora desta reportagem sem outro critério que não o do espaço. Fica, todavia, o essencial de uma bienal que soube desafiar modelos instituídos e ambicionou algo novo, capaz de criar outros entendimentos e forma de operar sobre a cultura e os espaços institucionais.
Haverá quem não consiga visitar todas as exposições. Muitos ficarão frustrados. Mas isso não significará um fracasso. Significa apenas que uma outra forma de visitar estes eventos vai ser necessária, uma que talvez passe mais pela pertença do que pela transitoriedade.
Até 24 de novembro, em várias instituições da zona metropolitana de Barcelona.
A Umbigo viajou a convite da Manifesta 15.