Casa Vale Ferreira: João Pedro Vale + Nuno Alexandre Ferreira na Casa do Museu de Serralves
O casal e dupla de artistas João Pedro Vale & Nuno Alexandre Ferreira mudou-se de armas e bagagens para a Casa de Serralves, transformando-a temporariamente em Casa Vale Ferreira.
A primeira exposição antológica dos artistas, com curadoria de Inês Grosso, apresenta uma seleção da produção artística do casal, celebrando mais de duas décadas de trabalho em conjunto, mas também de relação pessoal e afetiva. Não é por acaso que se casaram no dia da inauguração na Capela da Casa. Momento registado numa placa comemorativa à entrada da pequena igreja, num gesto artístico e celebratório da sua união, que entrecruza arte, vida e amor. Ao mesmo tempo, ato simbólico e político – um casamento gay, num museu –, relembrando que foi apenas em 2010 que a Assembleia da República aprovou o acesso ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo em Portugal.
Casa Vale Ferreira reúne criações iniciais da dupla, projetos recentes e novas criações realizadas propositadamente para aquela que é considerada exemplar único da arquitetura Art Déco em Portugal. Os artistas ocuparam a totalidade da Casa Rosa com a sua produção artística, surpreendendo pela magnificência das suas instalações, com reverberações de uma prática DIY (do it your self, faça você mesmo), da collage e da assemblage, numa montagem de várias referências de pendor cenográfico, performático e teatral, numa atitude punk, inconformista e de protesto, sobretudo evocativa pelos direitos, liberdades e garantias da comunidade LGBTQIA+. Curiosamente, o rosa da Casa tem aqui destaque, uma cor com um forte significado para a comunidade, pois se inicialmente foi usada pelos Nazis para estigmatizar e brutalizar, atualmente é símbolo de orgulho e de protesto contra a homofobia.
A ideia de Casa pode remeter para múltiplos significados e temáticas. O que consideramos casa? Conforto, segurança, família? Ou o oposto? Algo material, uma ideia ou memória? O que conseguimos abarcar numa casa? No final do filme O Feiticeiro de Oz (1939) de Victor Fleming e King Vidor, a pequena Dorothy, interpretada por Judy Garland, no final, conclui: “There’s no place like home” (Não há lugar como a nossa casa). Na Casa Vale Ferreira, conseguimos perscrutar muitas destas questões, mas sobretudo pensar a casa, enquanto ideia e memória, imaginário da dupla de artistas, onde cabem múltiplos cenários de sonhos e utopias, não só individuais, mas de pessoas que têm sido discriminadas, marginalizadas e excluídas social, racial e sexualmente. Justamente, em algumas das salas, encontramos peças que são referências diretas a O Feiticeiro de Oz (1939), como na peça Dorothy (2001) ou em There’s No Place Like Home (2008).
A instalação The Tearoom no Salão Nobre da Casa, transformado em entrada principal, é formada por um grande charriot com quase uma centena de casacos, ornamentados pelos artistas, ao longo dos últimos meses, ao estilo punk, com patches, rendas e outros acessórios pomposos, cada um em homenagem a poetas, artistas e personalidades LGBTQIA+. Caso de James Baldwin, Gisberta, Natália Correia, Rainer Werner Fassbinder, Al Berto, Virginia Woolf, Emily Dickinson, Susan Sontag, Divine, Claude Cahun, ou Yukio Mishima, apenas para citar alguns exemplos. Os visitantes podem vestir as peças, vislumbrarem-se no grande espelho do Salão e por uns momentos envergarem as mesmas causas das personalidades, enquanto potenciais ativistas pela liberdade, a igualdade e o amor. Segundo o texto curatorial: “Evocando diretamente a relação entre homossexualidade, clandestinidade e resistência, a instalação The Tearoom de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira resume a essência da obra dos artistas nas suas várias dimensões: performativa, investigativa, textual e visual. Atrevo-me a dizer que é quase uma retrospetiva do seu trabalho (como ideia de casa dentro da casa) e, sem dúvida, a melhor forma de iniciarmos o percurso pela sua obra”. De acordo, The Tearoom tem a particularidade de se encontrar no cruzamento entre performance, ativismo e assemblage textual e visual, numa montagem expandida no espaço expositivo. Vejamos a prática artística de Judy Chicago, ou Martha Rosler, artistas que usaram a interseção entre instalação, performance e ativismo – influências para a criação desta peça. Ressalvando que o termo Tearoom é significativo na terminologia gay para mencionar encontros clandestinos.
Na antiga sala de jogo da Casa, os artistas montaram um ginásio, com peças feitas com pastilhas elásticas mastigadas – evocando o físico e o visceral – e no piso superior da casa instalaram Vadios (2018), reencenando um urinol público – ambos locais de encontro e cruising da comunidade LGBTQIA+ e indo justamente ao encontro da temática dos encontros gays, na relação entre homossexualidade, clandestinidade e resistência. Reflexão sobre os limites entre o público e o privado, o visível e o invisível, recordando a pertinência e o significado destes lugares para a comunidade. Em Vadios (2018), por exemplo, circulamos pelo urinol de metal verde, sentindo o cheiro a poppers, com alguns glory holes, desenhos e excertos de poemas com referências diretas a práticas homossexuais, dos denominados poetas de sodoma, caso de Judith Teixeira, Raul Leal, ou António Botto, mas também de Bocage, ou Mário Cesariny. O título da peça remete para o termo no decreto de lei de 1912, que criminalizava a homossexualidade masculina, revogado apenas em 1982. Esta instalação materializa a história de perseguição, penalização e repressão de pessoas homossexuais, simultaneamente celebrando o seu intento, força e criação artística, algo que se destaca em toda a exposição. É interessante que ao longo do percurso expositivo encontramos instalados nos cantos, triângulos de ferro pintados de cor-de-rosa. A série Fonte (2015) relembra o símbolo do ACT UP (AIDS Coalition to Unleash Power), grupo internacional de ação política que luta para acabar com a pandemia da SIDA, contra o estigma e o silêncio, sobretudo a violência e o preconceito sofrido pela comunidade LGBTQIA+.
Descendo à cave e por sua vez à cozinha da Casa, igualmente nos assolam as mesmas questões, como em As Milagrosas Águas de São Bento (2021-2024). Um conjunto de garrafas com um suposto líquido milagroso, acompanhadas por um folheto sobre o seu poder, baseado num original do século XIX. A instalação Pastelaria (2022) atrai pelas suas luzes de néon verdes e prateleiras cheias de bolos, inoculados com 17 espécies de fungos. E 1983 (2022), uma fotografia dos artistas envelhecidos, ao estilo anos 1980. As três peças são referências a pandemias, a primeira à da COVID-19, a segunda à da SIDA. À efemeridade, à doença e ao envelhecimento. Salientando que foi em 1983 que surgiram as primeiras notícias sobre a SIDA em Portugal.
O epítome da exposição, propondo uma relação entre homoerotismo e cultura portuguesa, encontra-se em Heróis do Mar (2004). Uma grande escultura de um farol tombado, feito em areia. O elemento fálico ocupa grande parte da divisão central da Casa, podendo ser visto também do primeiro piso. A sua presença é marcante, apesar do material perene, trazendo à discussão a ligação dos portugueses com o mar e toda a arte e poética construída à sua volta. Relações que também podemos criar através da instalação Hero, Captain and Stranger (2009), influenciada pelo estudo de Moby-Dick (1851) de Herman Melville, a partir de um ponto de vista homoerótico, corroborado por vários investigadores e teóricos queer. Lembremos que no livro há um casamento homossexual, entre Ishmael, o narrador, e Queequeg, um homem das ilhas do pacífico. A peça instalativa é um cenário de um filme, de título homónimo, figurando o dormitório dos marinheiros num navio de caça à baleia, com adereços reinterpretados, como ossos de baleia pintados, caralhos das Caldas da Rainha, ou canecas com o Zé Povinho, nesse repensar da cultura portuguesa de uma perspetiva homoerótica.
Finalmente, salientamos Fim de Festa (2020-2024), uma instalação sonora, com cheiro de essência, impregnando as casas de banho da Casa. Aroma produzido especialmente para o efeito, tentando captar o odor de final de festa. De uma noite de dança, de misturas de perfume, suor, álcool e de encontros casuais em casas de banho. Sons de música abafada, mas também de um poema-prosa dito por um dos artistas. A sensação de final de festa poderá envolver tristeza, amargura ou cansaço. Desejo de voltar a casa, depois de termos estado numa espécie de limbo, ou num limiar entre a doçura, o prazer e o deslumbramento.
O título da exposição junta os sobrenomes dos artistas, numa combinação das suas identidades artísticas e pessoais, culminando no seu casamento em comunhão total de bens, efetivando paradigmaticamente a partilha da autoria das suas obras, lembrando a discussão seminal sobre a condição de autor. Demonstra, assim, como a arte pode ser um meio de ativismo; um megafone na luta contra as desigualdades, inclusive sociais, raciais e sexuais. Na intersecção entre arte, vida, amor e utopia.
Casa Vale Ferreira está patente até 17 de novembro de 2024 no Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Estão previstas uma série de performances e de programas paralelos a realizarem-se no segundo semestre do ano.