Por quanto tempo mais terei que nadar? “É que contemplar requer circunstâncias específicas, estados de espirito específicos”
Aqui não é a morte que se invoca nem o corpo como resistência, luta, alerta.[1]
Isto é sobre amor.
Tudo sobre o Amor[2].
Estas palavras manifestam-se lema e tema da exposição de Petra Preta, nas Galerias Municipais — Galeria da Boavista, não só por emergirem da folha de sala, mas por evidenciarem tudo aquilo a que a artista se propõe, e cumpre. Da mesma forma, comportam-se como um prelúdio do trabalho da artista, que tem uma enorme aproximação pictórica às propostas literárias de bell hooks, neste contexto, ao questionar Tudo sobre o Amor e as suas representações em corpos negres, tal como o livro homónimo da escritora acima mencionada.
Sara Fonseca da Graça, ou Petra Preta reúne, nesta exposição, uma hipótese trialógica da sua produção artística nos últimos três anos. Isto é, sugere uma trilogia por entre algumas das suas composições transdisciplinares que constituem a sua biblioteca de “imagens”, sistematizada por um exercício estético (e ético) de cura, regrado pela produção de um Black Gaze. Esta biblioteca de imagens — laconicamente sintetizada através desta trilogia composta pela série Humor Negro (2021), pela obra Manchê Bom (2024), e pela instalação Voltar para a minha Terra (2024) — é de facto sua. Digo sua no sentido daquilo que já bell hooks acautelava em Facing Differences: The Black Female Body[3] (1995) ao denotar a falta de um imaginário que representasse a liberdade e leveza negra: “criar imagens contra-hegemónicas da negritude que resistam aos estereótipos e desafiem a imaginação artística não é uma tarefa simples. [É fundamental] desviar o olhar, mapear um novo terreno – um terreno que só pode emergir de uma inventividade imaginativa, uma vez que não existe um corpo de imagens, [não existe] uma tradição a que recorrer”. Na verdade, a sua biblioteca compõe-se, então, através da criação de contra-imagens, assumindo a missão de ressignificação. Ainda assim, este exercício propõe mais do que uma subversão iconográfica, Petra Preta resgata o poder da representação, da mesma forma que resgata o poder da apresentação — isto é, da definição do real. O júbilo negro não é apenas uma ferramenta de subversão, é uma realidade, que apesar de não nos ser apresentada (por repressão), nem representada (na generalidade do imaginário artístico contemporâneo) — existe, fora de qualquer pretensão de descolonização. Em 2021, em entrevista ao Jornal Público, Dori Nigro também falava da problemática desse lugar de produção e imaginação negra: “às vezes quero fazer arte sem ter de falar de racismo, mas não tenho esse privilégio. Estou implicado nessa realidade. Por outro lado, as instituições e programadores vêem-me através desse lugar. Vejo-me em determinados espaços cumprindo uma falsa quota racial para responder a uma ideia ilegítima de descolonização”[4]. O que Dori Nigro argumenta e Sara Fonseca da Graça perpetua é que a descolonização não se cumpre (apenas) através da representatividade, mas através da representação, não como mimesis, mas como apresentação de um sensorium cultural que escapa à realidade ocidental.
A representação da negritude em deleite é o sensorium cultural que a artista tem escolhido apresentar —agora sim— como forma de descolonizar o olhar, ao longo da sua carreira, e esta exposição não foi excepção. Dizem-nos, as obras também, que esse é um processo de cura e não de luto: “és(curo). Escrevo, no escuro, não só do meu quarto, mas também, da alma. Assim, curo-me[5]”, lê-se numa alegre e colorida tela auto-referencial, Black Habits (2020-22), onde a artista se representa a ensaiar a sua série Humor Negro, rodeada dos retratos que produziu em honra d’O Camões Preto e de Achille Mbembe[6] — referenciando-os também no reverso das telas que pinta.
Como no capítulo do livro de Mbembe, “Descolonização Radical e a Festa da Imaginação” esta exposição é exatamente sobre isso, sobre a construção de um imaginário (porque a imaginação é individual) de libertação. Alerto-vos sobre a palavra libertação, pois é através do cumprimento da mesma que se reivindica a (auto)significação. É o que Sara Fonseca da Graça propõe, em vários media — em pequenos suportes de cerâmica esboça Notas para lembrar que ‘o prazer é uma medida de liberdade’ (2024); em tela rasga largos sorrisos em rostos negres, maiores que os próprios; em papel ilustra os (seus) hábitos de negritude; em áudio questiona a relação de corpos negres com elementos não-humanos, como a água (oceanos, mares, lagos, rios) e a terra: “Penso frequentemente nesta relação com os elementos da natureza, (…) é o pensamento a reproduzir a lógica do corpo e o corpo que reproduz a lógica de um sistema que não o contempla (…) e reclamar o poder de sentimentos irreconhecidos”; em tecido — numa peça que funciona em conjunto com a instalação sonora referida — tinge tais corpos mergulhados num azul profundo com o mar, pensando um imaginário outro (em deleite) àquele a que estes são associados — numa longa história de diásporas — : “poderei eu navegar tão para trás e devolver os corpos à terra e seus cantos a seus corpos? Estou cansada. (…) Enquanto tento adormecer, questiono o que poderia ter acontecido se as minhas ancestrais tivessem tido espaço para descanso, se tivessem tido direito a este espaço de imaginação profunda”. Num imaginário quase multi-naturalista, numa simbiose entre corpos de água e corpos de negritude, a artista ressignifica iconograficamente a relação traumática ou problemática entre as duas entidades. Por fim, Petra Preta também nos oferece uma instalação, Voltar para a Minha Terra (2024), onde a esperança, a lembrança e a pertença assumem as ferramentas do processo de cura: “há uma terra para onde se pode voltar, pelo menos é lá que repousa a esperança”[7].
Esta é uma litania pela sobrevivência do espírito e não será isso Tudo Sobre o Amor?
Por quanto tempo mais terei que nadar? Uma litania pela sobrevivência, de Sara Fonseca da Graça, com curadoria de Melissa Rodrigues, está patente nas Galerias Municipais — Galeria da Boavista até 20 de Outubro de 2024.
Nota: A autora não escreve ao abrigo do AO90.
[1] A citação no título é transcrita da instalação sonora patente na exposição de Sara Fonseca da Graça.
[2] Retirado da folha de sala desta exposição.
[3] Hooks, B. (1995) ‘Facing Differences: The Black Female Body’, in Art on my mind: visual politics. New York: The New Press, p.96.
[4] Duarte, M. (2021) “Há um Brasil a fazer perguntas difíceis a Portugal”. Ípsilon. Jornal Público, ed. 11.242, p. 2-8, 5 de fevereiro.
[5] Graça, J. (2020) Rasgos: O Camões Preto. Lisboa: Infinita editorial.
[6] Ver: Mbembe, A. (2017) “Descolonização Radical e a Festa da Imaginação”, in Políticas da Inimizade. Trad. de Marta Lança. Lisboa: Antígona.
[7] Retirado da folha de sala desta exposição.