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Regenerar ambientes

O Ponto d’Orvalho é um festival que teve recentemente a sua quarta edição. Entre 13 e 15 de Setembro de 2024, de sexta-feira a domingo, a programação prometia um encontro que celebrava a paisagem, a comensalidade e as artes. Tudo num ambiente de comunalidade num local com características únicas e vivas — a Herdade do Freixo do Meio, na zona de Montemor-o-Novo.

A premissa era esta. O que se segue é um diário de bordo com um apanhado de vivências.

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A ideia de ir para um festival, que nem é tanto festival, mas mais um encontro de pessoas curiosas por determinadas temáticas, num fim-de-semana de Setembro, que não parecia tanto Setembro, mas mais Agosto, é logo em si um bom presságio.

A viagem começou bem, com uma boleia. A boleia é o deixar ir, os horários não são nossos. Duas amigas que iam para o festival, a ideia era tentar desligar. A meio do caminho, com tanta conversa, já estávamos a chegar a Alcácer do Sal. Achávamos mutuamente que alguém dominava certamente o trajecto. Não há melhor maneira de começar a afastar da origem. Eventualmente cheguei a Montemor-o-Novo, onde seria a minha estadia. É um lugar muito especial, tão perto de Lisboa. Tem conventos com usos particulares. Um dado a artes performativas, outro para as artes visuais, multimédia e cerâmica. Montemor tem um pulsar particularmente vibrante, com os colectivos e associações a fazerem trabalhos únicos, com investigação séria sobre materiais e saberes que aqui ninguém quer que caiam em esquecimento. É um lugar de actuação, de vida. Alguns têm sido parceiros do Ponto d’Orvalho, como é o caso da Cooperativa Minga ou das construções em terra do Cru Atelier. Este ano não foi excepção.

Os conventos são lugares especiais em Montemor, é a percepção que tenho. E o primeiro momento de boas vindas do Ponto d’Orvalho, numa sexta-feira 13 (sem medos) foi no Convento de São Domingos. Às 19h entrávamos na nave principal da igreja do convento, para nos sentarmos e escutarmos um concerto de Antonina Nowacha. A atmosfera era etérea. Havia um fumo no ar que velava os pormenores da igreja. O espaço parecia despojado. Uma escultura de uma mão erguida no altar fazia-nos esquecer as divindades que ali costumam ser celebradas. Não considerei de menos importância este baque de silêncio. Compreendi-o como um preâmbulo. Começarmos a concentrar-nos no essencial. A acústica sempre circular e perfeita de uma igreja a fazer ecoar um som de um instrumento de cordas suave, onde a voz de Nowacha se deixava confundir com a harpa. Gradualmente elevava-se. Talvez aos céus.

O jantar seguiu-se no mesmo local. Ainda se sentia um certo burburinho dos encontros e estranhezas de grupos recém-formados. Mas ninguém deve ter ficado indiferente à noite amena que se fazia sentir e ao cenário que nos esperava. Um claustro com arcadas para irmos circulando, e ao centro do pátio, uma mesa farta criada pelos Pousio. Lembrei-me como os claustros dos conventos e mosteiros, quando em funcionamento, são o centro da vida dessas comunidades. É ali que se cultivam alimentos, se estende a roupa e se lançam as actividades da sesta, leitura ou meditação. Senti um claustro que voltou à vida nessa noite. Nada neste jantar foi tomado ao acaso. Os Pousio investigam o cruzamento entre a alimentação, a cultura, a arte e a etnografia. O jantar era em si um acto artístico. Os vegetais servidos, fornecidos pela Cooperativa Minga, tinham sido assados no fogo, nas Oficinas do Convento. Foram previamente envolvidos numa primeira camada protectora de folhas encontradas no montado do Freixo do Meio, e uma segunda camada, exterior, com barro vermelho de Vendas Novas. Tudo local. Estes vegetais foram depois colocados no chão e queimados lentamente por várias horas. A técnica é semelhante à soenga cabo-verdiana. Batata, batata-doce, cenouras e marmelos tinham assim um sabor fumado único, quando servidos. Os Pousio apresentaram-nos com um piso de coentros e acelgas, criando balanço entre o sabor do fumo e o fresco das ervas. Havia também pickles de beldroegas, uma salada de tomate coração de boi e cebola. Azeitonas, claro. Verdadeiras. Uma salada de grão e pimento vermelho assado. Sopa de feijão com abóbora. O uso das leguminosas, sempre, de acordo com as técnicas de sequeiro. Uma sopa fria de meloa com óleo de agrião. Uma autêntica manjedoura cheia de fatias de pão alentejano, como il faut. Bolo finto, algo inédito para quem não reconhece no palato a erva-doce dos folares. E também, tiborna de figos. Pingo de mel, pareceram-me. A época dos figos é das mais felizes do ano. O jantar preparado pelos Pousio apresentou aos convivas aquilo que o Ponto d’Orvalho promove: riqueza de sabores e saberes, mas muito focado numa palavra que se tornou mote nos dias seguintes: regenerativo.

E é nessa palavra que aqui me foco também. Como regenerar pode ser um veículo activo no modo como nos envolvemos com o que nos rodeia, e como se veicula através da expressão singular e colectiva. Nessa mesma noite rumou-se à Herdade do Freixo do Meio onde houve um workshop de Yuri Tuma que promovia novas formas de linguagem através de gestos e sons. Alguns continuaram por essa agrofloresta noite adentro. Eu apanhei boleia e voltei para Montemor.

No dia seguinte havia transfer da Rodoviária de Montemor-o-Novo até ao Freixo do Meio. Aproveitei para matar saudades de uma torrada de pão alentejano numa padaria a caminho do ponto de encontro. Aos sábados o edifício da rodoviária está fechado. Viam-se autocarros a largar passageiros no meio da estrada. Pólo Norte, qual cardinalidade orientadora, mas apenas o café da rodoviária, estava cheio de pessoas àquela hora. Sentei-me nas escadas da rodoviária, um dos meus desportos preferidos em Montemor, que já ali estive em grandes momentos de espera ao longo da vida. Aparece a Sílvia, uma italiana de mochila às costas. Perguntou pelo transfer. Tinha vindo para o festival porque queria sair de Lisboa, que o início de Setembro estava a ser intenso. As temáticas do Ponto d’Orvalho interessavam-lhe. No transfer, arrancámos ao som do “À minha maneira” dos Xutos e Pontapés, e prontos para ir em frente. Até percebermos que um carro estava estacionado logo ali no semáforo e não, como nós, à espera dele. Apita-se, veículo estacionado e lá contornamos e arrancamos novamente. No caminho, rapidamente passamos para uma paisagem lenta, amarelada, sobreiros a pontuarem os campos, com vacas, cabras e ovelhas a pastar. Num cruzamento vi um armazém agrícola com uma placa: José Luís da Silva Memé, Lda – Prestação de serviços à agricultura. Nomes que importam e que dizem ao que vêm. No Freixo do Meio tinha, entretanto, sido servido um pequeno-almoço dos Futuros do Passado na agrofloresta. A agrofloresta da Herdade do Freixo do Meio é uma das maiores de Portugal. Importa relevar que há todo um ecossistema constante e vivo, preservado com orientação acertada, de um dos maiores patrimónios que o Alentejo pode ter: o montado. No Freixo do Meio o montado é valorizado e aproveitado, e para quem o visita, relativiza a sua breve existência, uma vez que ali estamos perante paisagem milenar. Sim, milhares de anos a existir. É nesse sentido que a caminhada que se seguiu, orientada pelo arqueólogo Manuel Calado, ecoou em tantos dos visitantes.

O passeio organizado por Manuel Calado no Freixo do Meio tinha por título Origens. A ideia não era tanto perscrutar o passado, mas sim compreender algumas origens para um melhor entendimento do futuro. O percurso era de cerca de um quilómetro e tinhas cinco paragens. Começou com uma breve apresentação das origens da agricultura naquela região, há cerca de sete mil anos, e como tinha havido vestígios desses primeiros agricultores que tinham sido encontrados ali mesmo no Freixo do Meio. A conversa foi sendo conduzida para as construções megalíticas desses primeiros agricultores, e sobre a sua capacidade técnica e inventiva para fazer erguer tamanhos monumentos. Falou da invenção da corda (revolução das cordas, nas suas palavras), fundamental para envolver e deslocar pesos superiores ao do corpo, falou da alavanca, que multiplica a força que fazemos, e falou também de duas atitudes distintivas do ser humano — a resiliência, ou seja, não desistir da intenção de construir, muitas vezes passando esse ímpeto para várias gerações seguintes; e a força colectiva — a espécie humana saber que em conjunto consegue maiores feitos do que solitariamente. Estas invenções e atitudes explicam como se ergueram determinados monumentos megalíticos. Relembram também as nossas origens enquanto espécie, caso possamos estar esquecidos. A possibilidade da temática das origens não se esgotou nestas construções. Foram também invocadas as primeiras observações dos céus, da sinalização dos pontos mais altos da Lua e do Sol, a direcção dos seus movimentos. Havia uma relação directa entre os monumentos erguidos e o céu. Foi particularmente inspirador estar a ouvir estes saberes e conquistas dos nossos antepassados, pensando que ainda hoje são formas de orientação para todos nós. E mais ainda, ouvir estas palavras, enquanto nos enquadrávamos numa paisagem, também ela ancestral. Uma paisagem que foi testemunha de todas estas camadas da nossa memória colectiva.

O Sol, do qual tínhamos falado, estava no seu esplendor do meio-dia e o calor fazia-se sentir ali no meio das sombras dos sobreiros. Voltámos para a zona da cantina onde foi servido um almoço pela mão do chef Francesco Ogliari e da sua equipa do Tua Madre, restaurante em Évora com um projecto de recolha e cruzamentos de sabores alentejanos e italianos. O porco preto assado era do Freixo do Meio, cozinhado lentamente com alecrim, e servido com raspa de limão. Destaco também uma salada de feijão branco em vinagrete, e uma salada grega com requeijão de cabra para refrescar do imenso calor que se fazia sentir. O calor era grande, mas ainda me lembro da mousse de chocolate servida com azeite e flor de sal.

Não estive presente o tempo todo no festival, mas no dia seguinte regressei para a conversa Ecologias do Solo, organizada e moderada por Andreia Garcia. A conversa foi estranhamente animadora para as temáticas que invocava. Pelo menos foi a minha percepção. Falou-se bastante da questão da regeneração dos solos, e de projectos sustentáveis e equilibrados, como é o caso do Freixo do Meio, ou da Herdade de São Luís, ali fazendo-se representar pelo seu fundador Francisco Alves. Lara Espírito Santo, do restaurante Sem, mostrou a possibilidade de uma cozinha sem desperdício, com usos e escolhas vigilantes e entrosadas. Respeitar a sazonalidade, utilizar qualquer produto na sua íntegra, um menu que varia mediante a disponibilidade dos produtos existentes. A Estação Cooperativa Casa Branca apresentou um projecto cultural interessado na reabilitação da aldeia de Casa Branca, um interposto ferroviário que tem vindo a ver a sua população residente a diminuir. Mariana Sanchez Salvador apresentou uma visão clara sobre o impacto das nossas escolhas enquanto consumidores nas cidades em que a maioria da população mundial é residente. Ouviu-se muitas vezes a questão da reabilitação de solos, de saberes, de procurar incentivar as pessoas a serem mais conscientes do que consomem. Joana Bértholo trouxe o I-Ching, O Livro das Mutações, escolhendo um hexagrama que tinha como mote a ideia de metabolismo: tudo o que entra e sai da boca. Os metabolismos dos solos, a sua capacidade regenerativa, a insistência de que é possível utilizarmos recursos e relembrarmos técnicas que vivem dentro de nós. O público, sem inibições, participou. A última das pessoas a intervir emocionou-se e emocionou-nos a todos nós. Depois de uma vida como professora a ensinar o ciclo da água e das chuvas aos seus pequenos alunos, agora como agricultora nunca lhe tinha feito tanto sentido, nunca tinha compreendido tão bem. A água que vem e retorna aos solos, o ritmo constante dos ciclos que não cessam na Natureza.

Foi também em torno deste bem tão essencial que terminou o encontro do Ponto d’Orvalho, com uma performance de Jacira da Conceição que pedia ao público que a acompanhasse no transporte de ânforas de água até à agrofloresta. Não deixei de pensar como os rituais nos obrigam a parar e olhar novamente para o que já conhecemos, com uma certa reverência e humildade. Nada do que achamos conhecer, é para sempre, nada do que nos é essencial, está eternamente disponível. É preciso regenerarmos os solos, os recursos, os cursos da água, os terrenos milenares. É preciso regenerarmo-nos, uns aos outros, e num sentido comum. A força colectiva é uma aprendizagem antiga, assim como o regenerar ambientes nossos, é uma aprendizagem para o futuro. O Ponto d’Orvalho foi uma amostra bela do que podemos ser quando estamos atentos.

 

Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.

Luísa Salvador (Lisboa, 1988) é artista visual e investigadora. É doutora em História da Arte Contemporânea na NOVA FCSH, tendo sido bolseira da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia (2015-2019). Tem Mestrado em História da Arte Contemporânea da NOVA FCSH (2012) e Licenciatura em Escultura da FBAUL (2009). Paralelamente a esta atividade, desenvolve a sua prática artística. Expõe regularmente desde 2012. Foi vencedora do Prémio Jovens Criadores 2018 na categoria de Artes Plásticas. A par da sua prática artística desenvolve também uma atividade escrita, entre textos teóricos e crónicas. Fundou em 2018 a publicação trimestral “Almanaque — Reportório de Arte e Esoterismo”, da qual é editora. Vive e trabalha em Lisboa.

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