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Percepção de embate

Vocês acham que podem me ver?
Vocês acham que podem me ver?
Sou penumbra
luminosidade
o canto do povo e a sua liberdade.
(…)[1]

Talvez tudo tenha começado quando se responsabilizou a primeira mulher por todos os males do mundo. Pandora é criada como forma de punição e, porque abre uma caixa que uma figura masculina lhe disse para não abrir – a insubordinada! – espalha todas as desgraças pela face da terra. A verdade é que a história está repleta de exemplos de figuras femininas, deusas e heroínas de diferentes mitologias, com poderes e feitos que, tal como Pandora, tiveram as suas contribuições apagadas ou minimizadas, seja pelas estruturas patriarcais ou pela falta de conhecimento/reconhecimento. Este tipo de arquétipos, que relacionam a mulher diretamente ao mal, à catástrofe ou que lhe retiram o poder e reconhecimento merecido, foram e continuam a ser utilizados para transmitir valores culturais e morais, reforçando uma sociedade machista. As histórias transmitidas pela cultura tradicional colocam os homens no centro dos feitos heróicos e das conquistas, tendo um impacto directo na luta pela igualdade de género nos dias de hoje.

Francisca Aires Mateus vem reivindicar a voz feminina nas narrativas que são exemplos de força e coragem. 45,359kg (2024) é a sua mais recente instalação apresentada na Appleton e inspira-se, precisamente, nas figuras femininas guerreiras que fazem parte da história, como Esfinge, Medusa e a Padeira de Aljubarrota[2].

Ao adentrarmos a exposição e ao descermos as escadas, somos imediatamente envolvidos por sons enigmáticos – num primeiro momento até, talvez, perturbadores – que nos escapam tanto em familiaridade quanto em significado. É difícil conectá-los a qualquer referência conhecida. Ao entrar na Box, a escuridão absoluta intensifica a atmosfera de inquietude, enquanto o som, em 360 graus, nos envolve numa teia sensorial de tensão, alerta e surpresa. Os breves clarões de luz, as sombras das crianças que corriam e a desorientação completa quanto à nossa posição no espaço faziam crescer um desconforto que logo se metamorfoseou em algo diferente. A violência da experiência inicial é apaziguada, conduzindo-nos a um novo estado de percepção, no qual somos capazes de a processar de uma forma distinta. Os sons que nos pareciam indecifráveis tornam-se mais familiares e é nos possível identificar uma série de gemidos e respirações intensas fragmentadas e coreografadas.

Estes sons são, na verdade, sons criados por um grupo de mulheres envolvidas na prática de Muay Thai. Adivinham-se os impactos, os murros, empurrões e embates que ressoam pelo espaço numa espécie de espetáculo encenado do qual fazemos parte. A artista, ao deslocar a prática de Muay Thai do seu contexto, ao retirar do ringue o som do embate entre os corpos, onde a força e a violência são reais, ressignifica esses elementos. Manipulados e desconstruídos, agora apresentados em campo artístico, criam uma experiência que, mesmo que isenta da violência concreta, provoca um desconforto intrinsecamente ligado à esfera do sensível.

Francisca Aires Mateus tem nos habituado à confluência de linguagens e processos que incidem no nosso imaginário. Tem se servido das artes plásticas e do som/música para explorar a relação entre o espaço e o espectador e 45,359kg não é excepção. Nesta exposição, vai para além de uma simples subversão das percepções tradicionais sobre combate e expressão; reivindica a acção feminina como manifestação de força física e resistência aludindo à luta perante os códigos sociais impostos e às narrativas perpetuadas ao longo do tempo. A instalação transforma-se num espaço experimental onde poder e vulnerabilidade se entrelaçam, onde a fisicalidade dos corpos femininos se faz ouvir. Os sons e os flashes, que evocam a intensidade física, o contato e a brutalidade, fazem-nos pensar na força e no poder das conquistas das mulheres, assim como na persistente batalha que travam para assegurar a sua presença na história. É, em essência, um convite a desafiar suposições enraizadas e a abrir-se a novas formas de percepção e interpretação das narrativas.

Na Square, sala do andar de cima, há um apelo à dissolução de perspectivas através de outros mecanismos e meios. Ding Musa, com a exposição Ponto de Fuga, Linha de Fuga, Falta de Perspectiva – Modos de Usar – Todo Olhar é Político, em colaboração com Projecto Fidalga / Residência Paulo Reis[3], parte da investigação da construção de estruturas e conceitos que ditam o modo como percepcionamos o mundo para, depois, as desconstruir.

As obras apresentadas nesta exposição, que resultam da sua conhecida prática artística interdisciplinar, vão desde t-shirts, fotografia, vídeo, toalhas de cozinha a pratos. Ao nos colocar em confronto com objectos que conhecemos do nosso quotidiano, o artista provoca-nos e, ao mesmo tempo, convida-nos a reflectir e desafiar a forma como percepcionamos o que nos rodeia. Com palavras como Pergunta, Falha e Silêncio pintadas em cerâmica vidrada (Unidade de Construção – Modos de usar – pergunta / falha / silêncio, 2024), leva-nos a questionar as forças, narrativas e estruturas, mais ou menos assumidas ou visíveis, que nos regem e turvam o discernimento, começando muitas vezes na esfera privada.

Apesar de fazer uso de diferentes técnicas nas suas obras, a sua produção artística é, maioritariamente, centrada na fotografia (Unidade de Construção – Adaptação, 2024 e Unidade de Construção – mata #13, 2022). Utiliza-se do processo de representação pela câmera, da abstração, do ponto de vista e de fuga e outros elementos envolvidos na construção da imagens para explorar a dimensão estética e política do olhar sobre o mundo e as responsabilidades envolvidas. Tem vindo a investigar a construção do homem na sociedade por meio de um conjunto de metáforas onde frequentemente aparecem edifícios, materiais de construção e formas geométricas. Um elemento comum, e talvez central nesta exposição, é precisamente a incorporação de uma grelha, uma espécie de malha que organiza e direciona o olhar, simbolizando as organizações e estruturas que limitam a experiência não só intelectual como física. Musa critica este tipo de dispositivos, de ferramentas técnicas, afirmando que representam, também, meios de controlo ideológico[4] que nos aprisionam e condicionam no espaço, restringindo a nossa experiência, o nosso modo de pensar e entender um mundo que deveria ser constantemente reinterpretado e reimaginado por nós.

A Appleton acolhe duas exposições distintas mas que se aproximam através de um ponto – a ânsia pela liberdade. Seja através da procura pela justiça na partilha de narrativas históricas e culturais, homenageando as mulheres e salientando o seu papel na cultura e na nossa história, seja através da alusão a símbolos de estruturas sociais e de regimes de poder que nos regem, fazendo um apelo à sua dissolução e transformação.

As exposições podem ser visitadas até dia 12 de Outubro.

 

Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.

[1] TUPINAMBÁ, Renata Machado. (1989). “Matriarcal cunhã”. In: Heloisa Buarque de Hollanda (org.). (2021). As 29 poetas hoje, p. 61.
[2] Folha de sala.
[3] Residência em parceria com a Aomori Comtemporary Art Centre, Appleton e DIDAC, homenageando o trabalho do curador Paulo Reis, figura única no empenho de estabelecer pontes entre Brasil, Portugal e Espanha – https://ateliefidalga.com.br/categorias/residencia-paulo-reis
[4] Folha de sala.

Maria Inês Augusto, 33 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) como estagiária na área dos Serviços Educativos e trabalhou durante 9 anos no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada e actualmente desenvolve um projecto de curadoria de exposições de artistas emergentes. Tem vindo a produzir diferentes tipos de textos, desde publicação de catálogos, textos de exposições a folhas de sala. Colaborou recentemente com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas 2023.

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