Various Others Munique 2024. Sobre o que nos faz humanos: why are you (not) crying?
Era uma sexta-feira, dia 6 de setembro, e eu acordava a meio da madrugada, pouco antes do alarme das três da manhã apressar-me para o aeroporto de Lisboa. A breve viagem a Munique seria, também, a primeira vez que desembarcaria em território alemão – uma visita que, pessoalmente, portanto, assumia uma certa grandiosidade pela expetativa de que a Various Others revelasse um showcase não apenas da cena artística da capital da Baviera, mas, também, da experiência cultural e histórica daquele país. Os três dias durante os quais lá estive não seriam, é claro, suficientes para encerrar tal promessa: em 2024, mais de 200 artistas em exposição e 11 adições à já extensa lista de instituições participantes na edição do ano passado – entre galerias, museus e artist-run spaces – tornam ainda mais densa a malha de cooperações e encontros facilitados pela iniciativa. Entre os mais de 20km percorridos diariamente pelo centro de Munique – projetado, inclusive, enquanto mapa das artes pela plataforma Filter, novidade da Various Others – e um amontoado de folhas de sala e cartões de visita acumulados, conhecer a cidade só foi possível a partir e através da arte. Mas também o que (e como) vimos entre quatro paredes contaminou-se daquilo que ouvimos pelas ruas.
Na manhã do dia anterior, quinta-feira de abertura oficial da Various Others e pontapé para a rentrée da arte contemporânea em Munique, um jovem austríaco de 18 anos havia disparado contra o consulado israelita e o NS-Dokumentationszentrum, instituição de arte e educação que funciona no local que abrigou a “Casa Marrom”, antiga sede do Partido Nazi, e se debruça sobre a história do regime. O possível atentado terrorista terminaria com um conflito armado em praça pública, a morte da pessoa suspeita pela polícia alemã e o fecho de portas do Centro de Documentação durante dois dias. Naquela mesma tarde e não muito distante do local do confronto, inaugurava na Haus der Kunst, quase que clandestinamente, a maior mostra do coletivo ativista russo Pussy Riot até então. Apresentada na LSK-Galerie – bunker anexo ao edifício que representa a primeira grande comissão arquitetónica nazi –, Velvet Terrorism: Pussy Riot’s Russia transforma a memória daquele espaço numa espécie de diário confidencial da luta contra o governo Putin, também repleta de cor, vitalidade, música e redes de amor e cumplicidade. A retrospetiva nas paredes leva a caligrafia de Masha Aljochina, integrante do grupo que esteve durante três semanas a montar a primeira exposição alemã das Pussy Riot. A sua presença na vernissage inspira coragem ao público, que não deixa de transparecer, contudo, alguma preocupação. Mantida em segredo até o último momento, os organizadores do museu temiam sabotagens ou manifestações que colocassem em risco a segurança das pessoas envolvidas. A data era 5 de setembro, marco de 52 anos desde o massacre dos Jogos Olímpicos de Munique.
Foram essas as notícias que povoaram as minhas primeiras horas na cidade. A tensão latente era descoberta por entre conversas informais num primeiro almoço para a imprensa e agentes culturais locais, gentil e cuidadosamente guiado por Christian Ganzenberg, diretor da Various Others. A proximidade com a qual se orquestram as várias ocasiões de troca e convivência é, inclusive, grande aspeto de diferenciação do evento, que não prescinde de valorizar um tom pessoal e caloroso mesmo aos intentos últimos de negociação mercantil entre a comunidade artística. Ali, dá-se nome e rosto a cada entidade, como quem sabe que, com o terror na ordem do dia, humanizar o outro não é prática óbvia.
Não à toa uma série de mostras desta reentré volta-se à esfera da intimidade – por vezes traduzida na sua componente doméstica e, outras vezes, justamente no atrito entre as peles do corpo individual e do corpo social. Na Galeria Britta Rettberg, em colaboração com a galeria ateniense Callirrhoë, Unlikely Outcomes. A feast for the eyes, regales us with stories, de Nikolas Ventourakis, enquadra cenas de uma cozinha tornada, a um só tempo, arquivo universal e abstração plástica pela fotografia. Curiosamente, pias, loiças e alimentos reaparecem como motivos estéticos – desta vez em tinta em vez das objetivas das câmaras – em Try-Outs, a terceira mostra a solo de Helene Appel na Galeria Rüdiger Schöttle. Ambas as mostras explicitam um olhar atento e delicado às sutilezas das composições mundanas, desviando o foco aos objetos que abrem e possibilitam aquele espaço interior: dentro da casa, já nos dizia Emanuele Coccia, tudo se torna sujeito[1]. Tudo se reveste de um animismo inconsciente e voluntário. Em certa medida, tudo se torna humano.
Em dois espaços independentes, NEBYULA by Rosa Stern e space n.n., fica ainda mais claro de que forma o terreno do íntimo roça, inevitável e indissociavelmente, também a vida pública. No primeiro, a instalação Why Are You Crying?, de Jonas Höschl, faz referência à peça homónima de Richard Prince, de 1988 – uma das várias peças leiloadas pela princesa e socialite Gloria von Thurn und Taxis na tentativa de evitar a falência do seu império familiar. A indagação, estampada numa lona em letras garrafais, é cirúrgica, levantando questões tanto sobre a natureza ostensiva do mercado da arte como sobre o valor da lágrima e do drama humano num contexto de extremas desigualdades. Passamos do castelo ao albergue: no segundo, o espaço expositivo abre as suas portas como hostel, acomodando seis beliches onde 12 artistas, vindos de Viena, exibem as suas obras durante o dia e dormem durante a noite. Logo em frente, é numa cozinha móvel que artistas de Munique fazem as refeições para os convidados vienenses, contando, também com doações e apoios de estabelecimentos próximos. vacancy é exemplo paradigmático de como a arte pode ensaiar perguntas e respostas à crise da habitação e políticas de hospitalidade, oferecendo-nos uma outra expressão daquilo que poderia ser uma Economia da Intimidade.
Concretamente, é esse o título da exposição que Teresa Kutala Firmino, artista multimédia radicada em Joanesburgo, leva à Galeria Nagel Draxler. A mostra é o resultado de uma residência de quatro semanas em Angola, mas, também, de uma investigação bastante pessoal acerca da memória de Firmino sobre as mulheres à sua volta e a forma como lidavam com o amor e os homens. Na esteira do pensamento de bell hooks, que adota a perspetiva do cuidado como rubrica analítica para as relações de género e poder[2], a artista representa as fantasias românticas que, em tempos de supremacia branca/capitalista/patriarcal – ainda numa alusão ao termos de hooks –, dissimulam um conjunto de sujeições, abusos e gerenciamentos alheios sobre os corpos femininos. Nas suas imagens, em jeito de colagem, as personagens lembram máscaras africanas (talvez pela sua qualidade estática e furtiva, que se sobrepõe às verdadeiras emoções, veladas; talvez porque acenam a cerimónias tradicionais de comunhão), com as proporções estilizadas e as feições exageradas. Em duas telas, lê-se as inscrições em português “A vida precisa de mim acordada” e “A vida precisa de mim de pé” – em outras palavras, a vida precisa de si a todo custo e a todo momento. O amor, aqui, instrumentaliza-se enquanto força produtiva e reprodutiva, e não oferece liberdades sem demandar contrapartidas. A pílula anticoncepcional – que, segundo a jornalista Nkosazana Hlalethwa na folha de sala, talvez apareça na forma da esfera branca, recorrente nos trabalhos da artista – é alegórica desta contradição: enquanto permite o controlo da natalidade, medicaliza e regula a vida privada através de altas doses de hormonas e “ficções somáticas” de feminilidade[3]. Quem nos põe os comprimidos goela abaixo?
Quem dita como nos portamos, vestimos – como nos movemos? No Espace Louis Vuitton, a fotógrafa e videasta Rineke Dijkstra confronta-nos com este intricado e frágil processo de criação de identidade e autoimagem. Entre quatro retratos e quatro canais de exibição em vídeo, as salas da instituição escurecem-se e ganham novas paredes para construir a atmosfera de The Krazy House, antiga discoteca em Liverpool. Foi naquele clube que, entre 2008 e 2009, a artista conheceu e registou os cinco jovens que vemos a dançar, mais ou menos livremente, naquela que é a sua primeira individual em Munique. Nos filmes, que se prologam pela duração de cada uma das músicas, escolhidas a dedo para cada pessoa – e particularmente nostálgicas para os visitantes nascidos na década de 1990, como eu –, adolescentes de personalidades marcadamente distintas dançam, às suas maneiras, para a lente de Dijkstra. Diante de um fundo branco e sem sombras, iluminado e enquadrado de modo a não nos dar quaisquer pistas sobre a profundidade ou dimensões do espaço em que estavam, as personagens transportam-se para a nossa frente. Todas as nuances da adolescência ali – os constrangimentos, a brincadeira com as normas, os movimentos ensaiados, a desconfortável descoberta e encenação de si –, bem sob o nosso nariz. Destacados do ambiente de festa que usualmente partilhariam com tantas outras pessoas, sentimos como se passássemos a conhecer as expressões singulares de Megan, Simon, Nicky, Philip e Dee. De repente, cientes também das nossas próprias coreografias e gestos aprendidos, também eles parecem começar a nos conhecer. Haverá algo mais humano do que a performance?
Num outro registo, humanizar pode, inclusive, significar trazer à tona a identidade de perpetradores, reconhecendo a violência que se produz e reproduz nos nossos arredores, por pessoas que dividem connosco a vida quotidiana. É isto que denuncia a artista cubana Tania Bruguera, que concebe a exposição The Condition of No para as instalações temporárias do Museu Villa Stuck. Ao longo de três salas, e à semelhança do projeto interventivo das Pussy Riot, as suas obras transformam os espaços daquele edifício numa experiência táctil e imersiva dos mecanismos de censura. Quando diferentes sistemas de vigilância e controlo operam a partir do enfraquecimento e fragmentação do tecido e da comunicação social, Bruguera recobra uma espécie de contra-omissão, escancarando-nos a anatomia banal da repressão por meio de cartazes com as faces, nomes completos e feitos de pessoas que agem contra a democracia em Cuba. #NoTeDaVergüenza?, pergunta-lhes diretamente. Haverá algo mais humano do que a violência?
Há quem diga, porém, que nos tornamos mais humanos quando, nem tão paradoxalmente, nos tornamos menos humanos. Quando, por exemplo, nos deparamos com a dura realidade de que somos um amontoado de sujeiras e pequenos organismos, e que minhocas também podem tocar saxofone. Ouvimo-las em dirt, de Pamela Rosenkranz e Jenna Sutela, onde a abstração “Natureza” é reduzida até o pó. O amplo conceito de “energia”, esmiuçado até o farelo de uma folha de papel comestível. Para apreender a exposição patente na galeria max goelitz, e em parceria com a Sprüth Magers, é preciso capacitar os sentidos para tocar com os olhos, ver com as orelhas e ouvir com a língua; em síntese, é preciso criar um novo corpo. É o que também faz, desde os anos 1960, Rebecca Horn. A retrospetiva da artista alemã na Haus der Kunst – imbuída de uma nova força à luz do seu falecimento, no segundo dia da Various Others – exibe, brilhantemente, o seu universo delicadamente perturbador, um espaço-tempo que poderia ser tão originário quanto futurista, onde os limites entre a forma humana e as tecnologias são esgarçados ao máximo. Aqui, violinos tocam a si mesmos. A presença e a ausência de vida são ambas tão ordinárias quanto uma borboleta de metal ou um piano suspenso no teto. Da sua profícua carreira, Horn lega-nos o poder da fantasia e da metamorfose – tema que reaparece, ainda, nos belíssimos desenhos e peles de Heidi Bucher, na Jahn und Jahn Munique, e na cosmologia ficcionada de Arang Cho na nouveaux deuxdeux. No espaço ERES Projects, tornamo-nos as flores de Anna Hulačová, desejantes pelas abelhas que não vêm. Nas sombras de um contexto Antropocénico de cumulativas crises sociais, políticas, económicas e ecológicas, mostras como essas lembram-nos que imaginar – e, sobretudo, imaginar com (e como) outros seres e existências – é, definitivamente, um compromisso ético. Haverá algo mais?
A Various Others 2024 decorreu entre os dias 5 e 15 de setembro, e muitas das mostras prolongam-se pelos meses seguintes. O calendário artístico de Munique segue em constante atualização e pode ser consultado na plataforma online Filter.
A Umbigo viajou a Munique a convite da Various Others.
[1] Coccia, Emanuele. (2020). Reversing The New Global Monasticism. Disponível em <https://fallsemester.org/2020-1/2020/4/17/emanuele-coccia-escaping-the-global-monasticism>.
[2] Hooks, Bell. (2023). Tudo sobre o amor, Novas perspectivas. Orfeu Negro.
[3] Preciado, Paul B. (2018). Testo Junkie. Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. N-1 Edições.