XXIII Bienal Internacional de Arte de Cerveira
No ano em que se comemoraram os 50 anos do 25 de Abril, a XXIII Bienal Internacional de Arte de Cerveira (BIAC) assinala a efeméride ao desenvolver e apresentar uma programação que tem a liberdade como tema e questão centrais.
Intrinsecamente ligada à construção democrática que ocorreu em Portugal após o 25 de Abril, a história da Bienal Internacional de Arte de Cerveira data de 1978 como consequência dos Encontros Internacionais de Arte em Portugal organizados pelo Grupo Alvarez, Egídio Álvaro e a Revista Artes Plásticas. Num contexto de descentralização cultural, ao I Encontro no ano de 1974 na Casa da Carruagem, Valadares, seguem-se nos anos seguintes o de Viana do Castelo (1975), Póvoa do Varzim (1976), Caldas da Rainha (1977) e o último e V Encontro em Vila Nova de Cerveira, que está na génese da Bienal Internacional de Arte de Cerveira, realizada de dois em dois anos, num formato mais abrangente e com convidados estrangeiros.
Quarenta e seis anos após a primeira edição da BIAC, organizada por Jaime Isidoro (1924-2009), o sonho de um conjunto de artistas que, motivados pelos valores democráticos de Abril, procuraram descentralizar e democratizar o acesso à arte e cultura continua a concretizar-se na vila minhota, afirmando-se a mais antiga bienal da Península Ibérica no mapa da arte contemporânea nacional. O modelo conta com um concurso internacional, exposições de homenagem a artistas consagrados, presença de artistas convidados, projetos curatoriais diversificados, residências artísticas e programações paralelas.
Mantendo o formato adotado na primeira edição; promovendo a ligação entre a prática artística e o espaço urbano; o contacto com habitantes locais e um público diversificado, a XXIII edição da BIAC, com direção artística de Helena Mendes Pereira e Mafalda Santos, lança a questão: És livre?, desafiando artistas, curadores, colecionadores, pensadores e públicos a refletirem sobre a Liberdade. A resposta à pergunta que serve de tema a toda a programação corporiza-se num total de 160 obras de 120 artistas, oriundos de 20 países, e reflete-se na diversidade de propostas artísticas e atividades que compõem a presente edição.
Dando continuidade ao exercício, levado a cabo nos últimos anos pela BIAC, de homenagear artistas mulheres – Paula Rego em 2017 e Helena Almeida em 2022 -, destaque para a exposição de homenagem a Isabel Meyrelles (n. 1929) com curadoria de Marlene Oliveira e Perfecto Cuadrado, em parceria com a Fundação Cupertino de Miranda (Famalicão). Em exibição no Fórum Cultural de Cerveira, a mostra intitulada Isabel Meyrelles – Ser Livre dá a conhecer – no ano em que se comemoram cem anos da publicação do Manifesto Surrealista de André Breton – a obra da artista plástica, poeta e tradutora, considerada a primeira mulher surrealista portuguesa. A liberdade da criação plástica de Isabel Meyrelles é-nos revelada nas cerca de quarenta obras em exibição nas quais se explora a alusão ao fantástico, o humor, o amor e a ficção. Esculturas em bronze, terracota e madeira promovem a transmutação de representações várias, com destaque para figuras mitológicas, partes do corpo humano e objetos do quotidiano, na obra de uma artista para quem o surrealismo é sobretudo a liberdade.
Ainda no âmbito das homenagens, destacamos no Fórum Cultural de Cerveira as três salas dedicadas aos Sócios-Fundadores da FBAC: Henrique Silva, José Rodrigues e Jaime Isidoro, cujo centenário de nascimento e legado são igualmente celebrados com a exposição Jaime Isidoro: o pai das bienais, com curadoria de Helena Mendes Pereira, patente na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira até 15 de agosto.
Premiar, anunciar vanguardas e apresentar artistas emergentes são alguns dos objetivos do Concurso Internacional que, ao longo de quatro décadas, afirma-se como palco de oportunidades para novas gerações. Lançado o desafio de problematizar questões associadas com os valores democráticos conquistados na Revolução de Abril de 1974, o Concurso Internacional da XXIII BIAC apresenta cinco intervenções e 56 obras de 51 artistas, oriundos de 12 países: Alemanha, Brasil, Canadá, Chile, China, Colômbia, Coreia do Sul, Itália, Moldávia, Nigéria, Portugal, Turquia. Afirmando valores de liberdade e de igualdade, as obras selecionadas, em exibição no Fórum Cultural de Cerveira, refletem não obstante a diversidade de propostas, afinidades discursivas e formais que atravessam fronteiras, linguagens e contextos sociais. A este propósito destacamos as imagens de natureza quimérica de Mais que rio adentro (2022), de Ana Mantezi, cuja beleza interior do baixo Amazonas levou a artista a questionar a liberdade; a instalação de dois canais Landscape Archive (2023) de Celata & Praun, cujas imagens das pedreiras de mármore branco lançam-nos numa reflexão sobre questões ambientais e intervenção humana na paisagem; e a denúncia e reflexão sobre a crise habitacional em Portugal e exploração humana, retratadas na obra azulejar de Tito Senna T1 30m2.
Uma das novidades da presente edição do Concurso Internacional abrange a inclusão de propostas de intervenção artística de caráter participativo e efémero, tendo sido selecionadas 5 performances, a serem apresentadas no decorrer da bienal, entre julho e outubro: Empregado de Mesa de Eduardo Freitas; Malandro sem culpa de Flávio Rodrigues; Shadow Line de Júlio Cerdeira; Na Hora do Almoço de Maíra Freitas e L’elan vital de Manuel Teles & Frederico de Leonardis.
Ainda no espaço do Fórum Cultural de Cerveira encontra-se o projeto Casa da Liberdade, desenvolvida pela Viarco, a mais antiga e única fábrica de lápis da Península Ibérica, como espaço de experimentação livre com materiais de pintura e desenho que o público é convidado a experimentar.
Na Galeria Bienal de Cerveira, destaque para exposição dos vinte e seis artistas convidados – de diferentes gerações e geografias – que assumiram o desafio de pensar a liberdade num projeto curatorial assinado por Mafalda Santos. Reunindo pintura, desenho, fotografia, vídeo e instalação, a mostra organiza-se segundo núcleos distintos que estabelecem conexões e narrativas entrecruzadas, destacando-se temas comuns como a afirmação da liberdade do gesto artístico; o questionamento da nossa história e legado colonial; lutas de poder e memória; liberdade de identificação e afirmação de género e a força poética e política das palavras. Liberdade de expressão e de exercício artístico que encontramos em obras prementes e de cariz sociopolítico como Stiletto Dance (2024) de Tales Frey ou Dome Bunker I; II (2022) de Maria Trabulo.
Sendo a descentralização cultural um dos objetivos da BIAC desde a sua génese, importa assinalar o seu contributo no processo de democratização do aceso à cultura no público e no território, conforme revela o ciclo Residências e Intervenções Artísticas – Livre Trânsito comissariado por Mafalda Santos, que, ao abranger quinze freguesias do concelho, cria condições para experimentação artística ligada ao território e à paisagem com o objetivo principal de promover o contacto direto de artistas de diversos países com a comunidade. A esta dinâmica acrescem-se os ateliers livres, com orientação de artistas convidados e jovens artistas recém-licenciados de Viana do Castelo; atividades de mediação; visitas orientadas e conferências internacionais com oradores convidados.
Como habitualmente, a Bienal de Arte de Cerveira estende-se ao Convento de San Payo, onde podemos visitar, no espaço do Mestre José Rodrigues e até dia 27 de outubro, a exposição da Bienal de Cerveira que representou Portugal na Bienal Internacional de Arte de Macau 2023, intitulada A Metafísica da Sorte e a Ciência do Azar, com curadoria de Helena Mendes Pereira e Mafalda Santos. Ainda no âmbito da internacionalização desenvolvida pela Bienal, e a propósito da parceria estabelecida desde 2018 entre a Fundação e San Sperate – povoado na sardenha que possui o maior museu de pintura mural ao ar livre do mundo –, destacamos a inauguração na vila minhota do Mural AgriCULTURA, da autoria de Angelo Pilloni (1945), numa homenagem às origens camponesas das duas comunidades.
Celebrando a liberdade, a XXIII edição da Bienal de Arte de Cerveira apresenta uma programação diversificada numa procura por diminuir desigualdades. Exemplo de criação e trabalho contínuo em prol da cultura e da arte, a BIAC afirma-se enquanto acontecimento cultural de referência a nível nacional e internacional que ultrapassando fronteiras continua a desbravar o caminho traçado em 1978 de proporcionar liberdade aos artistas. Uma Bienal, nas palavras de Helena Mendes Pereira, dos artistas e para os artistas, que podemos visitar até 30 de dezembro.