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Faz-me lembrar…

Zaratan celebra este ano uma década de existência enquanto estrutura e espaço dedicado à criação, produção e difusão da arte contemporânea em Portugal. É desde 2014 que a associação se tem empenhado na promoção de artistas através da criação de novos canais de comunicação e da fomentação de processos culturais e criativos caracterizados por propostas de formatos alternativos e inovadores. Com uma programação e agenda marcadas pela diversidade de exposições e eventos, tem vindo a privilegiar uma abordagem inclusiva e de interdisciplinaridade, celebrando a multiplicidade de linguagens artísticas. Procura desafiar e redefinir constantemente práticas curatoriais no contexto contemporâneo, estabelecendo diálogos que questionam as abordagens convencionais. A sua nova exposição não é excepção.

Como parte da celebração destes 10 anos, Felix Vong propõe uma nova identidade, uma espécie de reflexo invertido: NATARAZ, um “animal imaginário, uma irmã (ou irmão), que só aparece de 10 em 10 anos para refletir e explorar retrospectivamente o passar do tempo”[1]. A sua primeira exposição individual em Portugal é, por isso, uma exposição que trata, inevitavelmente, o fluxo do tempo e a revisitação ao passado através de um olhar investigativo e crítico. Explora a memória e transforma-a, convidando-nos a uma reflexão à linearidade temporal e propondo, no seu lugar, uma circularidade ou, de alguma forma, uma repetição criativa do que já foi feito e visto na galeria no passado.

O artista evoca e referencia algumas das 50 exposições realizadas ao longo da última década. Seja por meio de uma peça (que se refere sempre a outra), ou pela exploração de um conceito específico, propoẽ, para além da clara revisitação, uma renovada percepção das obras dos artistas.

É sabido que Vong se aventura através de diversos meios, como pintura, desenho, ilustração, performance e fotografia. É também sabido que o tem feito através de uma crítica incisiva, mais ou menos frontal, ao meio artístico e aos seus agentes intervenientes, questionando os papéis tradicionais de quem opera no meio e das entidades que mediam a experiência artística. Há sempre, nas suas obras, uma camada mais profunda, que desafia a percepção imediata e convida o espectador a um envolvimento mais agudo e reflexivo, que vai para além da experiência estética. Leva-nos a participar na desconstrução das formas convencionais de se entender e interpretar a arte, desafiando, ao mesmo tempo, o sistema e, se quisermos, com sarcasmo e divertimento, as noções de propriedade intelectual e identidade artística.

Com implicações éticas e estéticas, as suas criações e práticas têm vindo a levantar interrogações fundamentais acerca do impacto da apropriação, da tensão entre o autêntico e o simulado, da reinterpretação e autoria, rompendo com convenções e expandindo os limites desses conceitos. Fá-lo com ironia, humor e admiração pelos artistas que “encarna”: “Comecei a minha prática artística ao troçar das artes que mais valorizo noutros artistas. George Bernard Shaw disse: ‘A imitação não é apenas a forma mais sincera de elogio, é também a forma mais sincera de aprendizagem’. Mas hoje afirmo que ‘eu simulo, logo eu existo’. Quando tenho uma nova ideia, vivo uma espécie de renascimento, onde me transformo noutra pessoa, para encarnar outra vida”[2].

Em NATARAZ, em jeito de celebração e homenagem – mas sem abandonar o tom provocativo – desdobra-se em referências, utilizando-se de quase-cópias, apropriações, reinterpretações e sugestões mais ou menos subtis. Vong abre, através deste exercício de repetição e revivalismo, portas para um número infindável de possibilidades, onde as fronteiras entre o original e o derivado, o visível e o sugerido são constantemente renegociadas e redefinidas.

Prova do seu interesse em explorar a memória e da vontade de propor, nesta mostra, um olhar sobre o passado, vemos, assim que entramos, um relógio (Sem título, 2024) – primeira peça que o artista faz referência em conversa sobre a exposição. Inspirado na obra de Susana Borges, trata-se de um objecto modificado, que funciona ao contrário, desafiando as perspectivas convencionais do tempo. Carecido da sua função primordial e com o movimento revertido, funciona como um convite à entrada numa temporalidade e espaço alternativo[3], preparando-nos para a revisitação de exposições a que vamos assistir.

Don’t touch trees!! (2024) e Hands on my sculpture (2024) referenciam o passado através de uma estratégia artística diferente – relembrando incidentes que aconteceram na galeria. A primeira, com colaboração com Chikki Chikki, parte da obra Floresta Mágica de Ana Pessoa para relembrar as regras de comportamento esperadas numa exposição. Se no passado alguns visitantes manusearam, sem autorização, uma árvore têxtil da artista, aqui, na obra de Vong, há um convite à quebra de etiqueta. Através de esculturas lúdicas em tecido que podem ser manuseadas e que se separam da composição, é permitida a “possibilidade única de restituição artística”[4]. Hands on my sculpture, por outro lado, relembra uma tentativa de furto que resultou na quebra de duas das várias barras de giz infundidas com medicamentos coloridos que formavam Água Temperamental (2018) de Bárbara Bulhão. Em 2019, a artista cria Hands on my sculpture, uma série de imagens da câmera de segurança que gravou o incidente; agora, Vong toma de empréstimo o título e recria as esculturas de giz e o roubo para esta exposição.

Counting of Lápis Azul (2024) refere duas exposições dos artistas Sara & André: Pequeno Museu da Rua de São Bento e Arredores, realizada em 2015, e Lápis Azul, em 2024. Na primeira, os artistas encarregaram a equipa de contar os visitantes da exposição e, dessa contagem, feita com traços num papel, resultou a obra Contagem dos visitantes do Pequeno Museu da Rua de São Bento e Arredores (pode ser vista na galeria). Este ano, em Lápis Azul, exposição coletiva que refletiu sobre a liberdade de expressão como uma das conquistas fundamentais do 25 de Abril de 1974, os visitantes receberam uma edição de um lápis criada pelos artistas. Vong teve a iniciativa de registar da mesma forma a quantidade de lápis que foi distribuída e a contagem final resultou na obra agora apresentada.

Com esta contaminação que se estende entre trabalhos e investigações e o jogo de referências a artistas já mencionados e a outros como António Olaio, Cristina Motta, Fábio Colaço, primeira desordem, Sara Mealha, etc., o artista presta tributo não só às diferentes práticas artísticas como ao espaço que acolheu as exposições, tanto que algumas das outras obras apresentadas assentam numa metainvestigação sobre a própria Zaratan[5]. Alude ao seu modo de funcionamento e designação com a criação de uma página na Wikipédia (Wikipedia, 2024) e ao seu carácter cíclico com o posicionamento de sapatos brancos (que foram outrora pretos) no centro de uma das salas, simbolizando as inúmeras exposições e, por isso, a frequente necessidade de pintar as paredes (The artists who Runs in the Space, 2024). Não deixa de fazer também aquilo que pode ser uma crítica, uma referência aos apoios financeiros através de uma pintura-cartão-de-sócio (Welcome (cartão de sócio), 2024) podendo remeter para os problemas financeiros da cena artística portuguesa que depende, muitas vezes, de apoios que escasseiam. A obra, que não está terminada até ser vendida, irá receber o nome do futuro proprietário na pintura.

Para terminar, na última sala, em jeito de despedida, está Till We Meet Again – representação invertida da pintura que Carlos Gaspar mostrou na galeria em 2022. A representação de vários caminhos que aparentam ter diferentes origens, mas que acabam por se encontrar e tomar o mesmo curso, deixa em aberto a hipótese de um novo encontro. Saímos com a sensação de, apesar de ser a primeira individual do artista, ter percorrido uma possível colectiva que prova a possibilidade de coexistência entre todos estes artistas no mesmo espaço e que a arte é – ou deve ser – um organismo vivo, livre, que se fragmenta e se estende em infinitas possibilidades.

NATARAZ pode ser visitada até dia 21 de Setembro.

 

Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO.

[1] https://zaratan.pt/pt/exhibit/120
[2] https://umbigomagazine.com/pt/blog/2023/04/21/entrevista-com-felix-vong-autor-da-capa-do-mes/
[3] Folha de sala.
[4] Folha de sala.
[5] https://zaratan.pt/pt/exhibit/120

Maria Inês Augusto, 33 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) como estagiária na área dos Serviços Educativos e trabalhou durante 9 anos no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada e actualmente desenvolve um projecto de curadoria de exposições de artistas emergentes. Tem vindo a produzir diferentes tipos de textos, desde publicação de catálogos, textos de exposições a folhas de sala. Colaborou recentemente com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas 2023.

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