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Técnica mista sobre papel #5 – O salutar silêncio

Retomar o quotidiano, depois da efervescência dos meses quentes, cria alguns sentimentos antagónicos. Setembro é o fim do Verão, não o sendo. É a charneira. Setembro é Verão e preparação para o Outono. Tudo no mesmo mês. Há quem nem vá de férias e chegado Setembro sente na mesma no ar aquela fúria temporária de que há imensas coisas para resolver.

E assim já se vai notando uma melancolia no ar. É cíclica, mais dia menos dia de Setembro. No outro dia, estava eu na rua e uma folha seca caiu mesmo à minha frente. Dançando em ziguezague, mas com vontade de cair a pique, encarquilhada e castanha, anunciou-me logo ali o início do Outono. Se estava preparada? Não estava. Mas os ritmos da Natureza têm um movimento próprio. Este ano, as temperaturas baixaram repentinamente no primeiro dia de Setembro. Os dias andam cheios de vento, como se anunciassem algo que vai mudar. E ainda que nada mude, damos por nós com a sensação de que já tudo voltou ao mesmo. Então torna-se evidente, como se há umas semanas não estivéssemos já a ir nesse sentido, de que os dias estão mais curtos, e a luz começa a entrar em tons dourados. Chegou o Outono, mesmo que não queiramos!

Gostei por isso de me relembrar de uma pintura que me ecoa este vazio estival. O salutar silêncio do fim do Verão que desliza para o início do Outono. É uma pintura a óleo de Manuel Amado intitulada Terraço com cadeira II da série A Casa Sobre o Mar (1992). O terraço representado é amplo, com pavimento em tons de tijolo, e um mar infinito ali defronte. O céu e o mar em tons azulados são apenas marcados por uma ténue linha do horizonte que separa o céu daquela água imensa. Oceânica, arriscaria até. Não há horizontes azuis tão amplos e frescos como os das nossas vistas sobre o Oceano Atlântico. O tom cinza dentro do azul denuncia que aqui se trata do oceano. Não há planura mediterrânica. É uma água que incorpora vento e nuvens e profundidades escuras. Observar este oceano é sempre um luxo. O oceano é forte e robusto e leva tudo consigo. Até os nossos pensamentos.

Terraço com cadeira II tem um título assertivo. Descreve um terraço onde há uma cadeira. A cadeira é de lona vermelha, com estrutura dobrável e braços de madeira. É um modelo de cadeira antigo, mas comum. Dobra-se na vertical em vez de rebater para a frente. A lona é cómoda porque o tecido adapta-se ao nosso peso. Podemos prolongar-nos ali por várias horas. E por isso, quando penso num lugar para suspirar melancolia pelo fim do Verão, penso neste enquadramento mais do que perfeito de uma das muitas pinturas de Manuel Amado. De uma “simplicidade ameaçadora”, como descreveu Paula Rego o trabalho do artista, várias são as vezes em que encontro nas pinturas de Manuel Amado lugares de conforto. Na sua pintura o tempo é suspenso. Não existe presença humana, não existem elementos que ajudem a marcar o tempo. Uma cadeira aberta num terraço, eficazmente, agarra um momento. Alguém se ausentou. Não sabemos por quanto tempo. A cadeira mantém-se e canaliza o olhar para onde está virada. Somos nós, espectadores, convidados a acomodar-nos naquela lona vermelha. A imagem é solar e o silêncio introspectivo.

Quem tem acesso a uma vista regular, sabe que a verdadeira essência da vista é saber que está ali sempre, mas que nunca nos devolve o mesmo. A vista é nossa, segundo os filtros com que a olhamos. Uns dias mais turvos, outros dias felizes, dias de cansaço, dias-a-dias. A vista em si é constante, os elementos mantêm-se no mesmo lugar, mudam as tonalidades consoante a meteorologia. Mas as condições dos dias, essas são nossas. É por isso que uma “simples” pintura de um terraço com vista para o oceano ressoa tanto. Terraço com cadeira II convida a estarmos lá, emaranhados no som e tons do oceano, enquanto nos deixamos levar pelo tempo que ali parece suspenso, mas é absoluto no que nos atinge.

Observar o oceano é sempre um luxo. A partir de lugar abrigado ainda mais. Acrescentar uma cadeira à circunstância é tudo o que é preciso. Assim já podemos reconciliar-nos na despedida do Verão e dar as boas-vindas ao Outono.

Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO.

Luísa Salvador (Lisboa, 1988) é artista visual e investigadora. É doutora em História da Arte Contemporânea na NOVA FCSH, tendo sido bolseira da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia (2015-2019). Tem Mestrado em História da Arte Contemporânea da NOVA FCSH (2012) e Licenciatura em Escultura da FBAUL (2009). Paralelamente a esta atividade, desenvolve a sua prática artística. Expõe regularmente desde 2012. Foi vencedora do Prémio Jovens Criadores 2018 na categoria de Artes Plásticas. A par da sua prática artística desenvolve também uma atividade escrita, entre textos teóricos e crónicas. Fundou em 2018 a publicação trimestral “Almanaque — Reportório de Arte e Esoterismo”, da qual é editora. Vive e trabalha em Lisboa.

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