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Cravos e Veludo no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC)

A arte tem sido, ao longo da história, uma poderosa ferramenta de poder e afirmação, sobretudo em períodos marcados por regimes opressivos, onde assume um papel transgressor e de resistência no garante da liberdade de expressão. Testemunho de descontentamento e resistência, instrumento de protesto e rebelião, mas também de esperança, a arte é expressão das inquietações, traumas e desejos de viragem partilhados pela sociedade. Seja por meio de metáforas, simbolismo, iconografia, pintura, fotografia, performance ou poesia, a expressão artística tem vindo a desafiar as narrativas impostas em períodos despóticos. É o fluxo do pensamento autónomo e crítico e a criação artística que, através da captura e reflexão tanto da brutalidade quanto da humanidade em tempos de instabilidade, têm vindo a transcender barreiras culturais e linguísticas, aproximando países e povos.

Cravos e Veludo, exposição patente no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC) é prova disso mesmo – do poder da arte na aproximação de narrativas e correspondências em determinado período de tempo entre dois países em pontos opostos da Europa. Curada por Adelaide Ginga e Sandra Baborovská[1], a exposição reúne obras de artistas de grande relevância no panorama artístico contemporâneo de Portugal e da antiga Checoslováquia, explorando o vínculo profundo entre arte e revolução através de um conjunto de obras de pintura, desenho, fotografia, escultura, vídeo e instalação. O projeto nasceu de uma pesquisa aprofundada durante cinco anos, que culminou na primeira exibição deste tema, em 2019, na Galeria Municipal de Praga, em comemoração dos 30 anos da Revolução de Veludo. Agora, reorganizada no MNAC, no ano em que se celebram os 50 anos da Revolução dos Cravos, a exposição continua a explorar e dar a conhecer as ligações e semelhanças, para muitos desconhecidas, entre estes dois períodos históricos.

Apesar de opostos em termos de regimes políticos, ambos viveram uma realidade de repressão e censura. Portugal esteve 48 anos sob uma ditadura fascista e a Checoslováquia, depois da ocupação alemã entre 1939 e 1945, ficou mais 41 anos (de 1948 a 1989) sob o poder do comunismo. Em termos cronológicos, este projecto curatorial assenta em três datas estruturantes: 1968, 1974 e 1989. Como ponto de partida, o ano de 1968 – altura em que desperta, em ambos os países, a esperança de uma mudança: por um lado, com o afastamento de Antonín Novotný do cargo de Primeiro Secretário do Comité Central do Partido Comunista da Checoslóvaquia e a consequente selecção de Alexander Dubcek (que coloca em causa a Cortina de Ferro e dá início à Primavera de Praga), e, por outro, em Portugal, a substituição de António de Oliveira Salazar por Marcelo Caetano, originando a Primavera Marcelista. Apesar das reformas desejadas não se concretizarem como era esperado, estas intensificaram o anseio pela democratização, dando origem a protestos contra o regime e alimentando, assim, as primeiras expectativas de uma verdadeira transformação política nos dois sistemas autoritários. Os anos de 1974 e 1989 marcam, como é sabido, as datas das revoluções que permitiram e abriram caminho para a conquista da liberdade, unindo os dois países numa narrativa comum de emancipação e renovação e dando origem a este possível estabelecimento de aproximações através de inesperadas afinidades e analogias temáticas, formais e conceptuais[2].

Distribuída ao longo da Ala Wilmotte e da Galeria Millennium BCP, a exposição conta com mais de uma centena de obras que, através de um diálogo entre diversas técnicas e suportes, estão organizadas dentro dos seguintes núcleos: Contexto; Resistência, Experimentalismo, Poesia; Corpo e Memória; Corpo Ação, Catarse; Hoje: As Memórias da Revolução e a Fragilidade da Liberdade e Ventos de Mudança entre o Social e o Individual. Dentro desta divisão proposta pelas curadoras, encontram-se obras das décadas pré, durante e pós revolução.

Em Portugal, sob a ditadura anti-moderna, a censura e o isolamento imposto, a década de 60 fica, no geral, marcada por propostas que procuram, de alguma forma, um escape. Percepções alternativas reclamam uma viragem a nível político e social da crua realidade vivida. Na Checoslováquia, este período é marcado por uma economia severamente estagnada e pela busca da liberalização política e cultural dentro do contexto do regime comunista. Época marcada em ambos os países, no que diz respeito à arte, por transformações radicais no entendimento do objecto artístico onde os artistas procuravam, apesar do isolamento, sincronizar as suas interrogações da própria condição existencial, as pesquisas em torno da percepção e objectualidade do motivo, com as que se registaram no contexto europeu. Uma narrativa crítica da realidade política e social era explorada e partilhada pelos artistas de ambos os países, que a dilatavam ou fragmentavam num exercício de dar voz e corpo ao panorama em que estavam inseridos.

Desta década estão representadas obras que são, na sua maioria, de autoria feminina. Ana Vieira (Senhora M.M.T.S., 1967; Silhueta (Senhora sentada), 1968) e Eva Kmentová (Escudo, 1960; Mãos, 1968; Sem título (impressões labiais), 1967) exploram, ligadas pela sensibilidade poética e por meio de um eco ou impressão de presença/ausência, a representação do corpo – com especial enfoque em mãos, olhos e outras partes do corpo -, manifestando uma sugestão de movimento e acção de carácter íntimo e sensorial. Tal como estas artistas, também Helena Almeida, Lourdes de Castro, Adriena Šimotová, Květa Válová e Jana Zelibska, através de diversas técnicas, experimentam e imprimem intimidade e presença pelo recorte, pelo vazio, pela imposição ou falta de identidade, através de sombras, linhas e fragmentos. Ana Hatherly desenvolve, durante este período, um trabalho criativo, poético e de energética investigação, permitindo-nos, também, nesta exposição, através das suas obras, ter acesso ao testemunho da Revolução e da realidade repressiva, de ansiedade e decadência que se vivia nas ruas.

Da força do discurso poético e da gramática visual experimental, estão representados artistas como Salette Tavares (Quel Air Claire, 1973), António Barros (Viver / Não Viver, 1973), Július Koller (U.F.O, 1979; Confronto, 1968; Revelação de U.F.O (Ideologia) (Socialismo Democrático), 1975) e Silvestre Pestana (Povo Novo e Maçã Terra, 1974), que marcam este período através de signos e símbolos linguísticos que associam acção, corpo e palavra enquanto elementos transformadores da percepção e sociabilidade.

No começo dos anos 70, o panorama político e a conjuntura social em Portugal eram de desgaste e cansaço. O impasse de uma guerra colonial prolongada e a insatisfação geral consequente das dificuldades económicas da população caracterizavam a realidade de um país que se revia numa postura “orgulhosamente sós” e que era comandado por forças políticas que causavam efeitos negativos na dinâmica cultural. O período de transição ideológica e política que caracterizou o nosso país nesta década apresenta uma complexa multiplicidade de referências, contribuindo indirectamente para abrir uma renovada etapa na produção artística. Se é verdade que as reformas empreendidas durante o período marcelista possibilitaram uma maior aproximação à situação internacional, não é menos certo que a política cultural de base traduzia uma ineficácia institucional expressa na falta de museus ou centros de arte contemporânea, na debilidade ou inexistência de mercado e na quase total ausência do apoio do Estado às tendências estéticas contemporâneas[3].

Deste período, encontram-se representados dois artistas que demonstram afinidades no que diz respeito à experiência espacial que se estende, por vezes, à escrita. Alberto Carneiro e Hugo Demartini centram o seu trabalho num exercício de gesto-pensamento[4] e na arte da acção, criando composições baseadas nas possibilidades do material e da matéria no espaço – Uma linha para os teus sentimentos estéticos (1979-1971) e Demonstração no espaço, 1968-1969 (fotografia por Jaroslav Franta). Karel Miler (com as obras Drawing e Limits, de 1973 e The Waste Paper, de 1975), Jan Mlĉoch (com Hostel e Mala de emigrante – do outro lado do mar, 1979) e Vitor Pomar (Sem título, 1970) através de diferentes meios, como fotografia e vídeo, aproximam-se, também, pelo meio de gestos e performance, demonstrando o poder da acção na criação de tensões.

O ano de 1974 e 1989 marcam o início dos processos da instauração de regimes democráticos. Primeiro em Portugal, com o 25 de Abril, o ambiente revolucionário sentiu-se nas ruas e fomentou a participação dos artistas na mudança desencadeada, assistindo-se, por exemplo, a uma explosão de pinturas murais e cartazes relacionados com a transformação política. Em Praga, a repressão policial sobre uma manifestação estudantil desencadeia uma série de protestos populares e dá início à Revolução do Veludo. Milhares de pessoas invadem as ruas de forma pacífica e juntam-se, em solidariedade com o povo checoslovaco, um grupo de jovens portugueses que levam cinquenta mil rosas para distribuir aos manifestantes. O panorama artístico da época desempenhou um papel fundamental enquanto forma de resistência e expressão política. Artistas, escritores, músicos e dramaturgos checoslovacos tornaram-se vozes proeminentes na luta contra o regime comunista.

Obras desta época apresentadas em Cravos e Veludo representam o espírito vivido em ambos os países e enunciam a vontade de expressar o que havia sido reprimido – Ernesto de Sousa, com a obra Revolution my body No. 2 (1976) é exemplo da vontade da comunidade artística em ser agente activo na mudança e que o espectador seja também um interlocutor e não apenas sujeito passivo. Nesta obra, um filme é projectado e o espectador é convidado a deixar a sua marca, a sua mensagem e contributo, escrevendo por cima das imagens. “A justaposição da esfera íntima com imagens manifestamente políticas torna explícito o sentido revolucionário da obra, quer ao nível do senso comum, quer da experiência individual e transformadora.”[5] Também Maria Helena Vieira com a obra A Poesia está na Rua (1975) quer dar corpo à Revolução, e Álvaro Lapa com Os criminosos e as suas propriedades (1975) e Artur Rosa com Desenhos Adiados (1978) demonstram a ânsia pela liberdade e, mais concretamente, a problemática da habitação.

Todos estes artistas, e outros que não foram mencionados, manifestam – de forma mais ou menos explícita e literal – a vontade generalizada em construir um país com futuro, uma sociedade mais consciente, justa e democrática, e é destas reflexões, propostas e jogos visuais que outra geração de artistas emerge com obras-transmissoras que nos relembram os perigos dos totalitarismos e a fragilidade da liberdade e democracia.

O conjunto de obras destes artistas, filhos da Revolução, é reunido no núcleo Hoje: As Memórias da Revolução e a Fragilidade da Liberdade. Da autoria de Sara & André, Carla Filipe, Zbyněk Baladrán, Adéla Babanová e outros, trabalhos com entusiasmo revolucionário e fruto da agitação colectiva dão continuidade ao diálogo crucial e necessário para o garante da liberdade individual e colectiva. São prova que a arte, para além de reflexo dos tempos, pode – e talvez deva – também ser agente activo na mudança, na preservação da memória e na promoção da construção de uma consciência democrática para todos.

Revisitamos, ao longo das várias salas, uma época de instabilidade, de contradições e de esperança que se refletiu nas investigações formais e conceptuais nas artes plásticas de ambos os países. As diferentes produções artísticas, cartazes, fotografias e artigos de jornais contextualizam e colocam-nos naquele não tão distante período. Cravos e Veludo – Arte e Revolução em Portugal e na Checoslováquia. 1968 – 1974 – 1989 recorda-nos como a presença, os corpos, símbolos, voz e escrita são poderosos manifestos políticos, funcionando como suportes e motores do desejo do alcance da liberdade, expressão e igualdade. Para além de promover a relação histórica e cultural Luso-Checa, através de uma aproximação poética e de testemunho, traz à tona – num período em que vemos crescer extremismos que nos mostram a fragilidade da liberdade – a capacidade da resistência humana, o poder do colectivo e a importância da arte da Revolução.

A exposição pode ser visitada até dia 27 de Outubro e contempla um programa educativo orientado com convidados histórica ou profissionalmente relacionados com a temática e mesas redondas para discussão de várias temáticas abordadas neste projeto[6].

 

Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO.

[1] Curadoras do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, e da Galerie hlavního města Prahy / Prague City Gallery, respectivamente.
[2] Como se pode ler no texto na primeira sala da exposição no MNAC.
[3] http://cvc.instituto-camoes.pt/decadas/anos-70.html
[4] Adelaide Ginga no catálogo da exposição Da arte por entre primaveras, cravos e veludo, pág. 81.
[5] PINTO, Paula. “O teu corpo é o meu corpo (1965-1975); História de uma obra que se metamorfoseou ao longo da biobibliografia de Ernesto de Sousa” in ArtCapital, 21-8-2014.
[6] Informação disponibilizada no site do MNAC.

Maria Inês Augusto, 33 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) como estagiária na área dos Serviços Educativos e trabalhou durante 9 anos no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada e actualmente desenvolve um projecto de curadoria de exposições de artistas emergentes. Tem vindo a produzir diferentes tipos de textos, desde publicação de catálogos, textos de exposições a folhas de sala. Colaborou recentemente com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas 2023.

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