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Júlia Ventura na Culturgest Lisboa

Performar com o corpo para a câmara é atualmente um gesto comum e altamente massificado, principalmente com o desenvolvimento das social media. Mas se recuarmos algumas décadas, a encenação de gestos em frente a uma máquina fotográfica ou de vídeo foi um movimento fortemente disruptivo. De Cindy Sherman, Francesca Woodman a Hannah Wilke, a câmara serviu para construir a identidade pessoal, desafiar noções de género e, principalmente, recuperar o poder sobre a própria imagem, sobretudo a do corpo feminino.

Em sintonia com a cena artística internacional, Júlia Ventura (nascida em 1952) mostra-se no contexto português como uma das artistas mais relevantes a abordar questões identitárias. Com um percurso artístico marcado pelo uso do corpo, do gesto e da palavra, a representação fotográfica e a autorrepresentação serão a sua principal linguagem. Na Culturgest, mostra-se agora um conjunto de trabalhos, de 1975 a 1983, que correspondem aos seus primeiros anos de produção artística e que revelam desde cedo as suas preocupações com questões de género.

A criação de personagens e a encenação de gestos que constituem o léxico do género, é profundamente visível na primeira sala da exposição. Performando para a câmara, ora pousando em gestos acentuadamente femininos e utilizando signos que o confirmam —maquilhagem acentuada, cabelo solto, óculos de sol, cigarro aceso, revista de moda—, ora num vestuário e postura mais andrógena, escondendo o seu cabelo e utilizando uma erva que, pousada sobre o seu lábio superior, se faz parecer com um bigode. Esta diferença de signos e posturas reproduz no observador sinais culturais de género, ou seja, a ideologia de género de uma cultura. São imagens fotográficas expostas e devolvidas ao espetador, espelhos que enfatizam as expetativas de parecença de quem as observa.

O interesse pelo experimental, pela repetição consecutiva de gestos utilizando sempre o mínimo de recursos, mostra-se uma constante ao longo de todas as sete salas da exposição. Na série de desenhos de luz realizados com um ponteiro evidencia-se a curiosidade da artista em tirar partido das potencialidades da fotografia, mas também o seu interesse em mapear o espaço e os limites do corpo. Por outro lado, a série de trabalhos que dão ênfase às mãos reflete a sua extrema economia de meios. O vídeo As Mãos (1981) constitui cerca de 10 minutos de um plano aproximado de duas mãos, onde a atenção recai sobre as suas micro gesticulações, lembrando-nos de como as mãos falam em silêncio.

A instalação é peculiar no percurso de Júlia Ventura e aqui mostra-se um dos seus raros trabalhos neste meio. Em Place of Enlightment (1982/2024), o espetador é estimulado com uma luz branca antes de entrar numa sala escura. Entrando, somos assoberbados por múltiplas vozes emitidas em simultâneo a partir de colunas nas paredes. O que ouvimos é a voz da artista a recitar palavras que abordam o existencial e o melancólico: “A need of rupture, a need of confrontation, a need of fight, a need of being aware”, ou “nothing to tell, nothing to feel, nothing to do, nothing to dream, nothing to look at, nothing to expect”. Nesta sala, a visão sobre o corpo desaparece e dá lugar ao invisível que nele existe: a voz. A artista cega-nos para nos apurar os sentidos, mostrando uma consciência poética sobre o corpo humano.

Ainda no ritmo da palavra e do som, vemos Why? (1981), um vídeo sem som que, num plano aproximado, mostra a boca da artista repetindo a expressão que dá título à obra. A repetição é sempre uma procura por sentido e a palavra muda acentua a urgência dessa busca. Em diálogo com este vídeo estão os fototextos que a artista produziu maioritariamente a partir do livro O Prazer do Texto de Roland Barthes. Sobre fundo branco, destacam-se o desenho das letras que formam frases como “it granulates, it grates, it caresses, it crackles, it cuts”, ou “slightly complex, tenuous, almost scatterbrained, a sudden movement of the head, like a bird who understands nothing of what we do not understand”. Sem contexto definido, as frases flutuam no vazio da linguagem textual, nos símbolos e sentidos que evocam. Novamente, o corpo sente-se não pela sua corporalidade, mas pelo espírito que o compõe.

Júlia Ventura é uma produtora incansável de imagens. A autorrepresentação, o corpo e a linguagem entrelaçam-se num diálogo contínuo com o invisível, expondo construções culturais de género que questionam também a própria materialidade da imagem. A sua obra revela sobretudo um território de resistência, uma ferramenta de desconstrução e reconfiguração dos papeis de género.

A exposição, com curadoria de Bruno Marchand, está patente na Culturgest Lisboa até ao dia 29 de setembro de 2024.

Laurinda Branquinho (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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