Top

Entrevista a Pedro Sequeira, autor da capa do mês

Pedro Sequeira (n. 1976, Cinfães, Portugal) trabalha sob o princípio de autonomia da criação, isto é, sob a premissa de que a cri-atividade não corresponde apenas à produtividade da imaginação, mas à produção. Na obra de Sequeira, a concepção dessa criatividade surge em momentos — e com elementos — do quotidiano. Irrompe das paisagens, dos materiais, da plasticidade e da cumplicidade possível entre essas componentes e o artista. Enquanto rejeita a automatização de processos criativos — na joalharia referindo-se à produção, e no desenho à homogeneização e higienização do olhar —, empenha-se em construir uma narrativa plástica e pictórica do que o rodeia, com o que o rodeia: a casa dos pais, a esferográfica, os materiais, os minerais e as peças banais que pinta — como chaminés — ou com as quais concebe as suas jóias.

Seja na pintura, no desenho ou na joalharia, já disseste, por várias vezes, que as tuas criações se opõem aos actuais processos de desenvolvimento tecnológico que, na arte são inerentemente instigados pela ‘estética do liso’[1]. Porquê e como é que te distancias desses processos?

Existem vários aspectos do campo artístico sobre os quais pensar e os problemas que apresenta na contemporaneidade. Alguns aspectos são partilhados entre a pintura/desenho e a joalharia, e outros são distintos. O desenvolvimento tecnológico não afecta a pintura porque os meios são os mesmos de sempre, a matéria que a compõe continua a ser a mesma. Mas afecta a joalharia a partir dos processos de produção onde, rapidamente, um artista passa a ocupar o lugar do designer quando opera um programa de computador para obter resultados produzidos a partir de parâmetros concretos, ou quando o resultado da materialidade do objecto produzido é obtida através de um processo mecânico. Este gesto deslaça a relação entre o olho e a mão, um jogo entre os dois onde coisas acontecem, a simbiose mais importante quando se experimentam possibilidades. Esta maneira de trabalhar não é errada mas, mais importante, não é a minha maneira de trabalhar. E, sobretudo, não compreendo a necessidade de fazer as coisas dessa forma, a menos que o objectivo seja produzir quantidade, e aqui abre-se outra discussão. Não tenho no meu léxico concepções como colecção ou série, cada objecto é um objecto e cada pintura é uma pintura. Mas fazer a mesma peça de outra forma é interessante e pintar a mesma pintura com outra forma é interessante. É desinteressante quando o trabalho se torna um produto ou quando não há um salto entre uma peça e a seguinte. A repetição é cansativa, é o lugar de ausência de ímpeto, de energia.

Acho que o meu trabalho se relaciona com o lugar onde estou e com as coisas que encontro. O meu carácter é reactivo, então diria que o que faço são reacções aos lugares onde estou, conversas, matéria, e a maneira como faço é um gesto directo, aberto (acessível ao outro). Este último aspecto é visível na joalharia, porque qualquer pessoa consegue fazer da maneira como eu faço e a compreensão de como esse objecto tomou forma é total, e isto interessa-me.

Nas tuas pinturas há uma certa intraduzibilidade formal, que dialoga com uma clareza narrativa. Da mesma forma, também há uma variação abismal entre a utilização da esferográfica e da tinta a óleo na realização destas pinturas. Queres falar um pouco sobre estas escolhas, de simplificação formal e complexificação técnica?

Escolho os materiais, o óleo é o material favorito, mas algumas pinturas a óleo parecem ser pintadas com guache. Gosto de superfícies baças, sem brilho, tons esmorecidos, sobreposições e contaminação, o óleo dá-me isto tudo.

Há uma certa felicidade ou satisfação com os materiais e a cor. Estamos sempre a olhar e a reparar em algo, como que a tomar notas. E alguns destes elementos perduram muito tempo na memória, posso usá-los uma e outra vez. A esferográfica tem que ver com um aspecto prático, de ser capaz de me ocupar com um desenho mesmo quando estou fora do ateliê ou em viagem. O tempo de desenhar é um tempo aproveitado, quer para olhar, quer para me conhecer a mim mesmo, há uma reflexão constante entre o que estou a ver e o que estou a traduzir para o papel, a maneira de fazer, descobrir coisas ao ir fazendo. Por outro lado, gosto de usar a esferográfica como se estivesse a usar óleo, ao sobrepor cores e integrar os elementos numa composição.

A narrativa nas pinturas e desenhos tornou-se importante, é talvez um acto egoísta da minha parte, o de ligar pontos onde o actor que gere esses pontos sou eu, uma ideia clássica sobre o universo do artista. Mas também pode ser uma reacção a uma prática artística académica ou discursiva sobre questões sociais dos dias de hoje e que não me interessam para o meu trabalho. Cheguei à pintura numa fase tardia e não é fácil falar sobre pintura. Interessa-me uma situação que não seja óbvia, onde a plasticidade da tinta, muitas vezes líquida e bacenta, colabore para um resultado ambíguo. Na minha prática, a pintura gera muitos momentos de tensão, o abandono e regresso constantes à mesma tela, na mesma medida que me energiza encontrar soluções para o que vejo como um problema. Mudei de ateliê recentemente e coloquei na parede uma pintura em que estou a trabalhar há mais de um ano e pensei em algumas alterações. São passos pequenos, decisões demoradas entre tempos de secagem e dúvidas.

Ao longo da tua carreira tem sido hábito teu o confronto e a correlação entre a joalharia e a pintura. Dizes que uma informa a outra. Podes explicar como consideras que a joalharia informa o desenho? Ainda este ano, no 30’ Kremnica International Art Jewellery Symposium and other media, também participaste com algumas pinturas. Podes falar sobre essa posição liminar?

O universo do meu trabalho é o mesmo na joalharia e na pintura, falam e mostram as mesmas coisas e, não obstante, são coisas muito diferentes enquanto objectos que habitam o mundo e a forma como são vistos. Isto é interessante, trabalhar tridimensionalmente, com muitos materiais e abordagens técnicas e a pintura onde a técnica é a mesma, mas construindo cenas diversas. Eu não faço desenhos prévios para o meu trabalho de joalharia, aqui o desenho é incapaz de apresentar soluções. Pelo contrário, é na abordagem directa com os materiais que as soluções aparecem, há aspectos que se revelam e, no entanto, o meu trabalho de joalharia contém muito desenho na sua construção. Acredito na ideia de contaminação, onde certas coisas transitam para outras e influenciam outras. Se há um resultado que me interessa, vou explorá-lo de outra forma e o trabalho é uma dinâmica contínua, interminável. Não trabalho em projectos ou com parâmetros, e um assunto pode morrer quando tiver que morrer, porque nunca sei o que vou fazer a seguir. Em Kremnica, como noutras residências, fiz joalharia e desenhos porque é natural que seja assim, é o meu trabalho de todos os dias. Da mesma forma que, desde a pintura, parei de trabalhar com outros meios além da joalharia, estas duas práticas tornaram-se em algo natural, essencial para a minha forma de viver.

Nota-se, na tua prática criativa, uma certa obsessão que persegue e esgota os espaços que habitas e a paisagem envolvente — quase como uma auto-etnografia, ou uma antropologia afetuosa do lugar. Esgotas, de forma minuciosa, as várias possibilidades do olhar sobre o lugar — vários ângulos, luzes, tempos e práticas que te informam sobre esse lugar —, de forma que, no papel também não sobra um espaço em branco para desprezar. O que reconheces nesse processo? Parte da vontade criativa ou do lugar?

O desenho tem algo de obsessivo, tenho muitos amigos assim, até mais obsessivos que eu. Acho que tem que ver com o que disse antes, do tempo de desenhar ser um tempo aproveitado. Não há tédio quando se desenha. Para além do desafio de fazer e de ver a cena emergir, é um bocado que levo dali para outro lugar, para onde posso olhar e relembrar coisas, rever a maneira e aspectos de desenhar, mais tarde.

Eu estudei fotografia no Porto, a qual abandonei definitivamente depois da pintura. Acho que isto diz algo sobre mim mesmo e sobre a minha escolha de meios e quão relevantes são para mim os meios com os quais trabalho.

Quando desenho o mesmo lugar mais que uma vez é porque voltei e há situações novas e porque se tornou relevante de alguma forma. E, em momentos diferentes, a disposição varia, uma maior ou menor disponibilidade, mais atenção a certo pormenor. É também uma forma de desdobrar a memória e sublinhar essas referências. Os lugares estão inevitavelmente ligados a uma energia criativa e talvez esta ocasione accionar esses lugares para experimentar um desenho, uma pintura, e então acontece qualquer coisa. Abrem-se perguntas novas.

Qual é o teu ponto de partida para a criação? Para além da relação com os lugares e as práticas que te rodeiam, há alguma pesquisa conceptual, técnica ou material?

Não há pesquisas conceptuais ou técnicas prévias. Não acredito nessa prática. É-me complicado escrever um projecto para uma residência ou bolsa ou outra coisa, a menos que escreva que não faço ideia do que vou lá fazer. Acredito que o trabalho me acompanha para onde vou ou onde estou, a maioria das vezes estou algures por causa do trabalho, mas mesmo aí sinto disponibilidade para o que vier. Não planeio o que fazer a seguir e, a qualquer momento, há algo que prende a minha atenção. É o sinal. O resto resume uma reacção ao que vai aparecendo no suporte, muitas vezes com surpresas, a parte interessante, e deixar-me ir sem preconceitos. Estudei e vivo e trabalho como artista para ser um homem livre, é condição inegociável, porque tenho um tempo de vida limitado, como todos nós. Quero fazer do meu tempo de vida um tempo construtivo, onde estou a descobrir coisas novas ao invés de seguir assuntos do dia, parâmetros ou impor o meu trabalho ao serviço de qualquer coisa. O meu desejo de autonomia, i.e., a minha liberdade intelectual, plasma-se na autonomia da pintura, do desenho e da joalharia enquanto disciplinas.

Que rumos consideras para a tua produção artística? Tens fases em que apostas mais na pintura, outras na joalharia — no futuro, imaginas alguma prioridade, estética, ética ou formal, a tomar conta da tua criação?

Não faço planos. Tudo acontece em simultâneo, como um palimpsesto. Sinto-me, na maior parte do tempo, como se estivesse num início, a começar algo, como que a deixar para atrás o que aconteceu e seguir em frente com vontade e coragem.

 

[1] Han, Byung-Chul, A Salvação do Belo. Trad. de Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis: Vozes: 2019.

Benedita Salema Roby (n. 1997). Investigadora e Escritora. Doutoranda em Estudos Artísticos: Arte e Mediações, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Mestre em Estética e Estudos Artísticos e Licenciada em História da Arte, pela mesma instituição. Neste momento encontra-se a realizar uma investigação acerca da correlação entre o graffiti (escrita criativa transgressiva) e a construção da esfera contra-pública e proletária, na cidade de Lisboa. Tem colaborado em projetos independentes com fotógrafos e writers, como é o caso do recente foto-livro da artista Ana Moraes aka. Unemployed Artist, Lisboa e Reação: Pixação não É Tag.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)