Vinte e cinco palavras ou menos de Luís Palma no Museu Municipal de Faro
Palavra e fotografia são termos intermutáveis. Com elas se constroem imagens do mundo – aliás, com as fotografias e as palavras, vão-se construindo mundos. Fotografia e palavra são mais do que testemunho: são elementos constitutivos. A mundivisão de Luís Palma (n. 1960) revela-se na equivalência entre imagem fotográfica e imagem verbal – não, por exemplo, na ligação entre títulos e peças fotográficas, mas na organização da exposição, que se faz como se se tratasse de um livro de “poemas selecionados”. Muitas vezes, em tais seleções, os títulos do conjunto correspondem ao título de um dos poemas nele incluídos. Aqui não é diferente: Vinte e cinco palavras ou menos designa uma das peças da exposição, que abarca ainda outras quatro peças. A implicação é que se leia o “poema” Vinte e cinco palavras ou menos (a fotografia assim intitulada) como uma unidade, idêntica nessa autonomia a cada um dos restantes quatro elementos expostos. Ora, um desses outros elementos, a que o autor chamou Projecto Escuro, inclui precisamente 25 fotografias, a preto e branco, umas ao alto outras ao largo, mas todas de dimensões semelhantes, alinhadas ao longo da parede lateral interna da capela do antigo convento feminino onde, desde há mais de 50 anos, funciona o Museu Municipal de Faro. O passo é o de um quiasma, de uma cruz: leia-se o título de uma fotografia como designação das 25 outras; e o título que nomeia estas 25 como projetado sobre a primeira (ou sobre qualquer uma das outras, afinal).
No altar, lugar cimeiro da antiga capela do convento, mostra-se a fotografia (a cores) que tem por título Vinte e cinco palavras ou menos: em primeiro plano, o prato de uma bateria, preparado com telas adesivas, e, atrás pendurado num cabide de madeira, um casaco de cabedal preto sobre outro, de ganga. O espaço esconso e a acumulação de elementos dentro dele fazem suspeitar tratar-se de um pequeno estúdio, ou da caravana de um músico: a confirmação vem na nota de Luís Palma à exposição: “O título deste projecto foi inspirado na ideia de Iggy Pop para a criação das letras dos Stooges” (de não usar mais de 25 palavras em cada canção que comporia, num gesto contrário ao de Bob Dylan) e ocorreu ao autor “durante a produção de um conjunto de fotografias […] tiradas no interior de uma rulote que servia de morada a um músico”. No pequeno folheto que acompanha a exposição, assim como no álbum editado por ocasião da mostra agora aberta ao público em Faro, a fotografia está datada de 2017 – a folha de sala, porém, refere-a com a data de 2021, o que remete para a sua apresentação inicial, na mostra coletiva We Want Electricity (Galeria Pedro Oliveira, com curadoria de Susana Moreira Marques).
Para esta individual de Faro, organizada pela Associação Artadentro, Palma propõe um diálogo entre aquela imagem altaneira, do espaço exíguo da criação e da rebeldia, com mais três peças – Paula (1993), Cabeça de boi dissecado (1993) e Lada (apresentada sem data na folha de sala, mas identificada, no álbum, como sendo de 2010), às quais se soma, enfim, o conjunto de 25 fotografias a preto e branco (ou versos de um poema).
Paula surge como ponto inicial da exposição, colocada como figura única na parede de fundo da renovada sala da capela; Cabeça de boi dissecado, exposta na mesma sala, mas de frente para a porta de entrada da exposição (ou seja, tornando-se a primeira imagem que a visitante conhece, assim que entra) fazem parte do Projecto Escuro tal como este se apresenta no catálogo da mostra: a revisitação da mostra que a pensa como seleção de obras poéticas faz com que sejam imaginadas enquanto refrões, ou versos autonomizados; obrigam a releituras do conjunto a partir de determinados eixos: a representação de um corpo nu, afirmativo e total na sua prova de vida, por um lado; e, por outro, uma cabeça sem pelo nem pele, em que o olho do boi – animal sacrificial? – se transforma no instrumento escopofílico do visitante, ou do fotógrafo, e que condiciona o contacto com todas as outras imagens expostas.
É do núcleo Projecto Escuro que se extraem alguns dos possíveis nexos da obra de Luís Palma com a história da arte fotográfica: à estética do contraste chiaroscuro Vinte e cinco palavras sobrevém o mundo que Larry Clark (aliás, fotografado por Palma em Lisboa em 1988, na imagem 25 do conjunto, a funcionar como verso de remate) criou no começo dos anos 1970 para uma ideia de América. O âmbito abarcado por Palma na coleção que data de meio século depois da que Clark fixou a partir de Tulsa, no Estado norte-americano de Oklahoma, assume uma maior transversalidade: vai desde Lisboa a Madrid, Porto, Nova Iorque e Londres, mas retrata personagens de cultura global, como Joe Strummer e Mick Jones, ou paisagens humanas e urbanas identificáveis com qualquer cidade de qualquer lugar do mundo atual.
A mostra permite conhecer o trabalho de Luís Palma ao longo do quase meio século que leva de criação fotográfica. Permite entender o modo como se aproxima de pessoas, de lugares (é conhecido o seu trabalho sobre paisagens urbanas ou de intervenção humana em lugares periféricos das cidades), a maneira como fixa ícones da cultura pop e como neles se espelha (veja-se o díptico Mick Jones, em que o músico é retratado a fotografar e encarna, assim, o próprio Luís Palma[1]). É um olhar para dentro de si mesmo que aceita a presença de tantos outros.
Vinte e cinco palavras ou menos de Luís Palma está patente no Museu Municipal de Faro até 15 de setembro de 2024.
Nota: O Museu Municipal de Faro foi reaberto ao público após os três meses que demoraram as obras de requalificação. A equipa responsável pelo projeto incluiu estudos de arquitetura de Teresa Valente, Patrícia Malobbia e João Mateus. As alterações mais visíveis, além da referida (re)abertura) da sala que prolonga a área da capela, refletem-se na melhoria substancial das acessibilidades (o primeiro andar do antigo convento era acessível apenas através de escadas) e na substituição dos pisos, para a qual se utilizaram sobretudo materiais da região – pedra de Bordeira, no térreo, e tijoleira de Santa Catarina, no superior. Louve-se a iniciativa e o avanço de uma intervenção pensada há mais de uma década.
[1] Curiosamente, as duas fotografias são mostradas em posições invertidas na exposição e no catálogo: neste, a página da esquerda mostra o músico empoleirado num espaldar, de pernas viradas para a esquerda, e a página da direita mostra-o com as pernas viradas para o lado direito: estatuetas a abrir um plano. Na parede do Museu Municipal de Faro, surge à esquerda a fotografia que no catálogo aparece à direita, e vice-versa: o efeito que se consegue na exposição é o de um convite à intimidade, a uma interioridade que se joga entre aquele abraço de pernas viradas para dentro (e não para o exterior dos limites das páginas do catálogo), o que ainda é sublinhado pelo facto de que, no alinhamento das sete (entre as 25) expostas ao largo, apenas as molduras destas duas fotos se tocam.