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Lightless (Quando não há luz): Sara Bichão no Museu de Serralves

Sara Bichão (PT, 1986) tem um processo de trabalho, muitas vezes fruto de residências artísticas, enraizado na relação com a natureza, o corpo e os objetos que perscruta no entorno. Criações geradas pelo conflito e memória desses encontros, realizadas com materiais recolhidos in loco, numa transformação poética, alquímica e quimérica. Instalações e esculturas, como versos no espaço, gerados por desenhos e palavras, pairando nos ambientes criados, numa envolvência misteriosa com o espectador.

Lightless (Quando não há luz), na Galeria Contemporânea do Museu de Serralves e na Sacristia da Capela da Casa, com curadoria de Inês Grosso, parte justamente de uma residência artística realizada num ateliê improvisado na quinta da Fundação, por vários períodos, ao longo de mais de um ano. Com a ajuda da equipa do museu, Sara Bichão foi navegando pela instituição num percurso triangular: ateliê-casa-museu. A artista, segundo uma filosofia de reaproveitamento e reciclagem, utilizou materiais que ia encontrando ao longo do caminho. Do jardim recolheu saibro (mistura de argila e areia), que cobre de tons alaranjados uma grande parte das passagens, os azulejos verde-água que revestem a fonte do Parterre Lateral, ou a tinta extraída de uvas plantadas na Quinta. Da Casa utilizou a icónica tinta rosa. Do museu, vasculhando as reservas e espaços de trabalho, reuniu materiais sobrantes de outras exposições, como de Rui Chafes, Bruce Nauman ou Olafur Eliasson.

A ideia de reciclagem, para além de ser um comentário político, assenta, sobretudo, numa noção de memória. Qual a ligação emocional que temos com os objetos? Quais as lembranças que ficam devido ao seu uso quotidiano? E que significados lhes poderemos dar, depois de transformados em peças novas? Não podíamos deixar de recordar o Kintsugi – arte japonesa de restaurar uma peça de cerâmica partida, embelezando-a com materiais nobres, como o ouro, a prata ou a platina –, que muito reverbera na contemporaneidade face ao uso exacerbado de recursos naturais por parte da humanidade. Ainda no que diz respeito aos museus: como é que estas instituições, com uma missão tão específica, como a de conservar, preservar e divulgar um determinado património, poderão adaptar-se a esta nova realidade e dinâmica ecológica?

A exposição de Sara Bichão, para além de proporcionar um questionamento sobre estas noções, igualmente nos envolve num ambiente imersivo, enigmático e poético. Aliás, a curadora do projeto expositivo, numa visita guiada, confessou que a artista lhe tinha enviado a seguinte mensagem: « Rosa, carne, terra, ossos, azul, noite, água, luz… ». Algumas pistas para entendermos Lightless e o processo de trabalho espontâneo, fluído e sensível da artista.

Na Galeria do Museu, as luzes LED azuis suspensas no teto e as pontuais de tons mais quentes evidenciam um forte contraste, convergindo, no centro, num palco com corpos amorfos amontoados, como se fosse um cenário, ou sonho explanado. À sua volta, uma espécie de casulo pendurado no teto, um espelho intervencionado com a tinta rosa da Casa, dez cabeças esculpidas com saibro e um retângulo revestido com azulejos da fonte do Parterre Lateral, com um pequeno orifício, que deixa entrar um pouco de luz do exterior. Não obstante, à entrada do ambiente instalativo consta uma cortina de lamelas de PVC, demarcando o interior do exterior, referente a uma das zonas de trabalho da instituição.

Segundo o texto que acompanha a exposição, “[a]s suas obras são poemas no espaço, acontecimentos que nos envolvem, afetam e abalam interior e fisicamente, por vezes de forma quase visceral, como visceral é o seu processo criativo”. De acordo, a artista, utilizando a sua unidade corporal na relação com o espaço expositivo – dez passos –, foi compondo a instalação. Com o seu corpo, amontoou dez sacos de tecido num plinto no meio da sala, o peso máximo que conseguia carregar. Sacos cozidos e enchidos por si, pintados com o saibro e a tinta das uvas, transformados em corpos amorfos, como se fossem pedaços de carne, ou vísceras. Formas que nos recordam as das pinturas de Francis Bacon pela sua metamorfose, movimento e desfiguração. Curiosamente, o espelho – uma maquete da exposição de outro artista –, também tem a área do corpo de Sara, que, através de pinceladas de tinta rosa, o transformou num oásis, refletindo a sua luz no chão do espaço expositivo, assemelhando-se aos lagos da Casa de Serralves.

Tudo parte do corpo: potência e fragilidade da existência humana. As dez cabeças são como rostos indefiníveis, que nos observam na escuridão, com os seus olhos iluminados. Mais uma vez à medida das mãos da artista, onde nelas encontramos as suas impressões. Todavia, também têm uma marca deixada pela estadia no ateliê. Situado a poucos metros do Bairro da Pasteleira, uma das zonas de maior tráfico e consumo de droga do Porto. Estas esculturas também são inspiradas por esses corpos envenenados, inertes e inanimados.

No entanto, para além da escuridão, do visceral e da incerteza, na Sacristia da Capela da Casa de Serralves, iluminada por um grande óculo, é apresentada uma série de desenhos sobre cartão. Produções que, tal como as esculturas da Galeria, foram realizadas com materiais descobertos na Fundação. Os desenhos são extensões do pensamento e prática artística de Sara Bichão. Relacionam-se com a instalação, na medida em que foi a partir desse ato meditativo que começou a materializar muitas das suas ideias. Neles vemos algumas formas similares, cores e texturas. Um complemento ao ambiente instalativo e um outro ponto de vista sobre o processo de trabalho da artista.

O título, Lightless, propositadamente ambíguo, propõe uma indagação sobre a esperança e a falta dela. A dualidade entre a luz e a escuridão, a vida e a morte, a presença e a ausência. Do quão são necessários estes contrastes que se misturam e se fundem. A sutura que ajuda a cicatrizar a ferida. A perpetua transformação de todos os seres e formas de existência.

Lightless (Quando não há luz) de Sara Bichão está patente no Museu de Arte Contemporânea de Serralves até 3 de novembro de 2024.

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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