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Um Labirinto de Passos Intermináveis de Alexandra Ferreira no Solar dos Zagallos

Na exposição Um Labirinto de Passos Intermináveis, o núcleo maior de peças de Alexandra Ferreira encontra-se reunido na sala de exposições do edifício Solar dos Zagallos.

O remanescente aparece a pontuar os jardins do palácio. Algumas peças surgem na bucólica estufa, de pequenas dimensões, recentemente recuperada. Outras situam-se junto à fonte, inseridas na Capela do Senhor dos Passos, adornada por azulejos do século XVIII, de fortes tons de azul e branco, alusivos aos milagres de Santo António.

Alexandra Ferreira, depois de regressar da Alemanha, tem feito de uma pedreira, em Vila Viçosa, o seu atelier. Lugar onde abunda o mármore e onde a artista tem encontrado um fecundo e vasto quadro de estímulos para a sua obra artística.

Muitas vezes atribuímos ao mármore um peso e uma corporeidade que parece contradizer-se com a instalação que a artista integra na Capela do Senhor dos Passos. Finas lajes entrecruzam-se junto ao altar e, umas sobre as outras, formam um amontoado que desafia as leis da gravidade. Longe das pedras pesadas, evocadas por Camus, em o Mito de Sísifo, as finas lâminas vão propondo, pelo modo como se articulam, um olhar em stacatto sobre as danças angulosas que disferem no espaço.

A leveza da sua composição e a disposição variada dos seus elementos sugerem uma paisagem de certo modo apocalíptica, assente na vulnerabilidade. Estaremos perante uma catástrofe eminente, ou face a um acontecimento que já passou, ao seu remanescente?

Nesta paisagem, a artista ensaiou um abrigo em miniatura, de compleição frágil, sustentado, na sua cobertura, por uma singela coluna.

Talvez os apaixonados por Caspar David Friedrich tenham encontrado consolo nesta dócil instalação, ou oportunidade para assistir a um simulacro das inquietações do tempo presente. Uma transformação de matriz romântica, que a artista labora cuidadosamente, e numa atitude experiencial e intensamente processual. Talvez se trate de um testemunho de “conexão atemporal”, como diria Benjamin, ou de “sobrevivência”, como entenderia Warburg.

Didi-Huberman falava, na sua história de arte, da semelhança das imagens[1], e do modo como podiam reaparecer em tempos diferentes. Num exercício de incessante reverberação, e num sentido de ressurreição do antigo.

É por isso que, sem culpa, enquanto espectadora, pareço intuir uma repetição de um nascimento, de um surgimento de uma nova vida. Olho a instalação de Alexandra Ferreira e vagueio, através da minha imaginação, em simultâneo, pela obra Mar de Gelo, de Friedrich. Não consigo deixar de as vislumbrar, sem as ligar, sem fazer delas alguma conexão. Alguma comparação.

E é essa cumplicidade que por vezes se estabelece, entre artistas e espectadores, assente na ideia de semelhança das imagens. Longe da linearidade da história de arte, como o disse Didi-Huberman, a propósito de Benjamin: estabelece-se uma interpretação do presente, ancorada no passado[2], uma dialética das imagens: “No momento em que nos anos 1932-1933 Benjamin propõe a sua teoria da semelhança, a imagem torna-se novamente o cruzamento de sobrevivências do gesto mímico, sobrevivências das afinidades mágicas e desse mimetismo do tempo que representa, de modo exemplar, a crença na astrologia”[3].

Astrologia, geografia, geologia, antropologia, arqueologia material e psíquica. Na obra exposta de Alexandra Ferreira, parecem confluir estes saberes invocados. As peças que pontuam o Solar dos Zagallos ressoam a ideia de vestígio, de memória, mas memória que, apesar de ser intuída como passado, conflui no tempo presente, e aproxima-se de nós. A sugestão de uma pequena caveira animal, ou as suas sombras, esculpidas sobre a pedra, bem como a impressão de uma pequena escada que aparece sulcada sobre a superfície de uma rocha evocam uma deambulação pelo tempo, pela memoração.

Imagino a artista no atelier, a observar, a selecionar as pequenas pedras, os seus rastos. Um atelier com uma pulsação própria, onde o acaso é acalentado, o impreciso é conservado, e segue as suas próprias regras. Também Giacometti conservava, nas janelas do seu estúdio, a poeira dos dias. A obra que saía das suas mãos era uma delicada elaboração de impressões, imprecisões e sombras.

Transitoriedade, acidentalidade e anacronismo são termos que assolam e teimam em ser evocados ao longo da exposição. Um trajeto feito de pequenos detalhes, de acasos, de justaposições. Um verdadeiro achado de vestígios e memórias: uma pedra sobre uma estrutura em ferro, que alude a um leito, e que a artista chamou Esta felicidade não durou para sempre; uma rocha assente sobre um banco tradicional; uma pedra que parece uma caveira de animal, pousada sobre uma bancada de trabalho, sulcada pelo tempo; formas em mármore justapostas, de diferentes cores e texturas; uma cadeira em ferro antiga, coberta por uma pequena rocha; um vaso com uma planta, sobre um banquinho de verga.

Um Labirinto de Passos Intermináveis de Alexandra Ferreira está patente no Solar dos Zagallos até 14 de setembro.

 

[1] DIDI-HUBERMAN, Georges. (2017). Diante do tempo. História da Arte e Anacronismo das Imagens. Orfeu Negro.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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