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O ponto espiral da surpresa: Restos, Rastros e Traços de João Fiadeiro no MAC/CCB

Emprestar a palavra ao terreno do não-saber é uma incumbência difícil. Neste espaço, que não é exatamente vazio – se não, talvez, justamente o seu contrário, excessivo, eufórico e populoso –, basta um pequeno tropeço e está-se de volta à superfície. Num rápido (des)encontro, esbarra-se num conceito vacilante, arruma-se um sentido e é-se lançado para fora das profundezas amorfas. Na verdade, quiçá não haja um “fora” para a vastidão do desconhecido, só um pequeno “dentro”, iluminado e mais ou menos permeável, onde a significação é possível.

A escrita, sem dúvida, testa as fronteiras entre estas duas lacunas, sempre com um pé atravessado no interior do saber (ou tão só – visto que o seu contrário é, de facto, a natureza de todas as coisas – o não-não-saber). Vez ou outra, porém, é capaz de descrever perfeitamente a experiência opaca do ininteligível: pelas palavras de Clarice Lispector, “(…) era bom. ‘Não-entender’ era tão vasto que ultrapassava qualquer entender – entender era sempre limitado. Mas não-entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao Deus. Não era um não-entender como um simples de espírito. O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma bênção estranha como a de ter loucura sem ser doida. (…) Compreender era sempre um erro — preferia a largueza tão ampla e livre e sem erros que era não-entender. Era ruim, mas pelo menos se sabia que se estava em plena condição humana”[1].

Também uma imagem – assumindo, aqui, o risco de agrupar formas visuais de ontologias seguramente distintas – se aproxima da gramática do símbolo, da representação, enquanto preserva o mistério daquilo que a motiva e esculpe. Mesmo na sua estabilidade totalitária que mostra e presentifica, a imagem disfarça um conceito escorregadio, parcial, transmutado. O olhar, por outro lado, parece querer sempre o descobrir. A visão torna-se apreensão, apodera-se do objeto que lhe é apresentado e não tarda em enquadrá-lo segundo as normas da realidade.

Para o fenomenólogo Emmanuel Levinas, de outra ordem é a experiência táctil. “A carícia consiste em não se apoderar de nada, em solicitar o que se afasta incessantemente da sua forma para um futuro – nunca suficientemente futuro –, em solicitar o que se escapa como se ainda não fosse. A carícia procura, rebusca”[2]. A questão que se coloca, aqui, é de que forma o não-saber e o não-não-saber se conjugam no corpo. Como aparecem ou se mascaram num gesto? No caso de uma criação performativa – onde estão simultaneamente em jogo questões do ver e do mover, do exterior e do interior do corpo –, como, quando e onde será possível preservar o desconhecido?

É esse o acontecimento instável e enigmático que persegue João Fiadeiro. Em entrevista concedida para a publicação Composição em Tempo Real: Anatomia de uma decisão (2017), livro que espelha e regista parte das estratégias e práticas criativas do coreógrafo português, Fiadeiro sublinha que busca, justamente, “as formas que emergem sem autor”. Sem autor, talvez, porque sem centro, sem clarividência, sem guião. Sem autor, também, porque nascidas de uma experiência relacional, num ponto do espaço-tempo qualquer criado entre corpo e corpo, corpo e mundo. Sem autor, ainda, porque prolongam uma intencionalidade na direção do invisível, do imprevisível – um movimento quase secreto a todos os agentes envolvidos, que “[s]ubverte a relação do eu com o si e com o não-eu. Um não-eu amorfo arrasta o eu para um futuro absoluto, em que ele se evade e perde a sua posição de sujeito. A sua ‘intenção’ já não vai para a luz, para o significativo. Toda ela paixão, acomoda-se (…) na evanescência da ternura.”[3]

O trabalho de Fiadeiro, portanto, opera no momento da surpresa. Não é por acaso que o conjunto de propostas que apresenta no MAC/CCB, desde maio até setembro deste ano, compõe aquilo que denomina de “uma retro-prospectiva” – ou seja, um rodopiar do intervalo entre aquilo que o artista já produziu e aquilo que, num futuro sempre mais futuro, ainda poderá ser. Na exposição Restos, Rastros e Traços, o visitante conhece os ecos da obra do artista e do seu próprio processo de conceber e montar a mostra em questão, que exibe e incorpora a memória viva das suas criações, parcerias, dúvidas, experimentações.

Repartidas ao longo de três salas e um pequeno espaço anexo, obras das mais de três décadas de carreira de Fiadeiro encontram, assim, maneira de serem suspensas no tempo, trazidas para o aqui e o agora. Pouco a pouco – confrontados, por exemplo, com as variações subtis no corpo e rosto de Márcia Lança em três fotografias de Patrícia Almeida, ou com a série I Am (Not) Here, em diálogo com o imaginário de Helena Almeida –, vamos percebendo que cada ato, cada decisão, é continuamente feita e refeita. Composta em tempo real, mesmo na ausência física do artista. Entre o não-saber e o não-não-saber, vai abrindo e fazendo vibrar um espaço onde tanto a promessa como a ameaça coexistem.

Restos, Rastros e Traços, parte do programa Introspectiva, de João Fiadeiro, estará patente até 22 de setembro no MAC/CCB, em Belém, Lisboa.

 

[1] LISPECTOR, Clarice. (1974). Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. José Olympio, pp. 42-43.
[2] LEVINAS, Emmanuel. (1961/1980). Totalidade e Infinito. Edições 70, p. 236.
[3] Id. Ibid., p. 238.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

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