A tecnosfera, segundo Rodrigo Gomes
“Textura” foi a primeira palavra que me ocorreu ao sair do espaço do Convento de Santo António, em Loulé, depois de visitar a exposição Tecnosfera, de Rodrigo Gomes (n. 1991). É curioso como as ideias se colam ao que se percebe do mundo, através das palavras. Algum magma cerebral as suscita – ou dele alguma coisa as dessoterra. Os vãos do antigo convento, o chão dele e as paredes, ajudam a construir a noção de textura. Mas por que razão sobrevém esta palavra a propósito de uma série de peças geradas no trabalho sobre noções (e práticas) de tecnologia, que habitualmente associo a abstrações, à ausência de concretude, ao não palpável (e, por isso, ao que não permite o toque, o conhecer das texturas)?
“Tecnosfera” é um modo alternativo (ou complementar) de entender a ideia de “antroposfera”. Num dos meios de comunicação da UNESCO, o UNESCO Courier, Jan Zalasiewicz explica que a Terra é composta por uma série de “esferas”, comummente descritas como litosfera (ou as fundações rochosas do planeta), hidrosfera (a água no estado líquido) e criosfera (as zonas geladas dos polos e dos cumes das montanhas), atmosfera (o ar que se respira), e biosfera (de que o ser humano faz parte enquanto organismo vivo). A tecnosfera, mais recentemente descrita por quem estuda os fenómenos terrestres, apresenta-se como “conceito desenvolvido por Peter Haff” (geólogo e engenheiro da Universidade de Duke, nos E.U.A.) que, à semelhança do Antropoceno, “é cada vez mais reconhecido” nas ciências e nas artes: foi, acrescenta o autor, o eixo criativo de uma iniciativa da Casa da Cultura Mundial (Haus der Kulturen der Welt), centro de artes contemporâneas em Berlim. A tecnosfera abrange “todos os objetos tecnológicos criados pelo ser humano” organizados num sistema (e não apenas como “coleção crescente de maquinaria tecnológica”). É esse “sistema” que me vem à mente quando leio ou ouço a palavra “tecnosfera”, é ele que remete para a abstração.
A obra artística de Rodrigo Gomes, natural de Faro e com formação na Universidade de Évora e na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, tem sido criada em torno de uma série de ideias de abstrato e concreto, no cruzamento entre a materialidade da escultura (plástica ou sonora) e a imaterialidade ou a ideação de conceitos. Nessa encruzilhada, encontra-se um sistema, ou como que a sugestão de modo de operar, em que as ideias interferem sobre os objetos e estes conformam (ou co-formam) ideias. Pode ser que essa sugestão explique que uma textura se entenda enquanto imaterialidade.
Ou então, são esculturas/quadros como POST HUMAN SKULL, GABOR GHOST ou SWANS – os títulos entendo-os como meramente indicativos, pois as sugestões escultóricas, visuais, tanto remetem para formas animais como para vestígios de esqueletos (humanos ou não) – o que aponta para a ideia de uma textura presente, a materialidade tornada forma que tenta a aproximação (quanto quis tocar-lhes!). SYMMETRY OF SEE (#1 e #2) são, apesar de instaladas como quadros, das peças que mais suscitam a urgência da deambulação ao seu redor: projetam-se para diante, exteriorizam-se das molduras, a recordar a experiência que David Cronenberg anunciava em 1983, em Videodrome. (Pense-se em como o cinema antecipa tantas das formas artísticas que quase deixou de conseguir acompanhar – ou em como o cinema, a técnica e a arte – mas muito menos a sua indústria – se tem transformado.)
O que (ainda) se vê quando surge perante nós a escultura do que aparenta ser uma cabeça humana, é uma cabeça humana na sua relação com o que é familiar: a forma arredondada, a disposição dos olhos, do nariz, do que poderiam ser os ouvidos. Mas as figuras de Rodrigo Gomes anteveem uma variação desse perceber: o que se percebe não reproduz uma cabeça humana: resulta antes de uma projeção artificial (lida por uma máquina, ainda que humanamente programada) daquilo que se pode entender como cabeça humana. Como reagir? Os elementos tradicionais deixam de servir e a familiaridade ilude, é enganosa – o que está perante nós não é familiar, mesmo que o pareça.
Rodrigo Gomes apresenta assim (numa das publicações no Instagram) a peça mais complexa, que reúne numa instalação som, imagem projetada e escultura: SYMMETRY OF SPEECH (“Simetria de Discurso”) “explora novos sistemas de escrita”, colocando em comunicação, através do som e da imagem, duas redes neuronais (artificialmente replicadas). Este estímulo tecnológico é ativado por sons considerados como dos mais ancestrais da Humanidade: a proposta de toda a exposição concentra-se aqui: fechar o arco que vai da existência mais puramente animal (o aparelho fonético humano na sua capacidade primordial) à sofisticação tecnológica da linguagem artificial. Da comunicação (do diálogo?) entre ambas resultará uma linguagem nova? A tecnosfera é apenas um conjunto de massa poluente criada pelo ser humano (a “massa” representada pelos dois blocos, esculpidos numa combinação de acrílico, sikalastic e resina poliéster, que contêm cada um, um monitor que reproduz as imagens e os sons)? Ou poderá continuar a resultar em experimentação artística, na criação daquilo que, persistimos nesta crença, nos distingue de outros seres?
Produzida pelo município louletano, com curadoria de Miguel Cheta (e apoio do Museu Zer0 e da DGArtes), Tecnosfera dá nome a uma exposição pensada ao longo de um ano para a galeria do Convento de Santo António. No seu perfil de Instagram, o autor entende-a como um “novo corpo de trabalho” – é matéria, um corpo. O curador relembra-o quando, na folha de sala, escreve que a exposição “convida o espectador a explorar a materialização de imagens computacionais em esculturas”. Tal exploração passa pelo diálogo entre três campos que organizam as peças exibidas e a que correspondem as três áreas espaciais da antiga igreja do Convento capucho de Santo António: O Diálogo / Linguagem, na capela lateral; O Corpo, na secção central do templo; e A Visão, na sala à esquerda de quem entra. Os títulos indiciam uma possibilidade, ou o perscrutar de potências discursivas. Se o discurso se concretiza através de sons que reproduzem cantos guturais da Mongólia (SYMMETRY OF SPEECH, a partir da programação de código por António Dias e Francisco Braga) ou pelo desafio que lança ao visitante, num vaivém de descoberta e ocultação, projeção, transparência e espelhamento (HOW FAR IS FAR AWAY?), é a tecnosfera que se presentifica – corporiza-se cada elemento que, no espaço da antiga igreja, ganha o sentido de um monólito vindo do espaço. Já não somos os símios intrigados do filme de Kubrick, mas o espanto é o mesmo e provavelmente as perguntas serão semelhantes. Quanto dista de nós o longe muito longe? Quem somos, afinal?
Tecnosfera está patente no Convento de Santo António, em Loulé, até 14 de setembro.