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Enciclopédia Negra

Inaugurada em 2021 na Pinacoteca de São Paulo e após a passagem pelo Museu de Arte do Rio em 2022, a exposição Enciclopédia Negra[1] apresenta-se pela primeira vez em Portugal, na Sala de Exposições da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa (Porto), inserindo-se no projeto investigativo Não foi Cabral: revendo silêncios e omissões, que pretende fornecer novos questionamentos sobre o modo como a História é construída e como podemos de forma crítica criar novos mecanismos para a ler e interpretar.

Promovendo uma reflexão sobre as omissões e os silêncios da historiografia brasileira, a mostra com curadoria da antropóloga e investigadora Lilia Schwarcz, do historiador Flávio dos Santos Gomes e do artista Jaime Lauriano, amplia a visibilidade de personalidades negras, até hoje pouco conhecidas, da história do Brasil, com o objetivo de reescrever uma história apagada durante quase cinco séculos e de promover a sua representação visual. Sistematicamente e propositadamente silenciadas e invisibilizadas pela história oficial, a atuação das populações de origem africana no Brasil – país que socializou a escravidão como linguagem – é-nos revelada num projeto definido pelos seus autores como sendo um ato de reparação histórica, concreta e simbólica, e de política de memória: “Como diz o teórico Frantz Fanon e, no Brasil, o sociólogo Mário Medeiros, as populações negras falecem duas vezes. Fisicamente e falecem na memória”[2].

Integrada num amplo projeto que se iniciou em 2016, a exposição Enciclopédia Negra revela-nos mais de 100 obras, assinadas por 36 artistas afro-brasileiros, que se pautaram nos verbetes escritos para o livro homónimo que reúne 417 verbetes e mais de 550 biografias de personalidades negras. Constituído por dois corpos distintos e autónomos, mas complementares – o livro e a exposição –, o projeto Enciclopédia Negra revela-nos uma provocação no próprio título, ao recorrer ao modelo iluminista de Diderot, não para abordar os feitos das sociedades brancas, mas para dar a conhecer o protagonismo de negros/as/es no Brasil, desde os tempos coloniais aos dias de hoje.

Apagados por uma historiografia tradicionalmente branca, estes personagens adquiriram na Enciclopédia Negra singularidade e individualidade na reconstrução de um passado de resistência e reinvenção: “Foram pessoas que se agarraram ao direito à liberdade; profissionais liberais que romperam com as barreiras do racismo; esportistas que desafiaram as amarras de seu tempo; mães que lutaram pela alforria de suas famílias; professoras que ensinaram seus alunos a respeito de suas origens; indivíduos que se revoltaram e organizaram insurreições; curandeiros e médicos que salvaram doentes; músicos que criaram e expandiram maneiras diferentes de se fazer cultura; ativistas que escreveram manifestos, fundaram associações e jornais; líderes religiosos que reinventaram outras Áfricas no Brasil”.[3]

Constituída por retratos de personalidades historicamente importantes mas que não tiveram os seus retratos produzidos, a exposição Enciclopédia Negra procura rever e criar uma reparação histórica, fazendo com que tenhamos, daqui para a frente, uma ‘pinacoteca negra’ e uma imaginação mais generosa e diversificada acerca da história do Brasil[4]. Realizadas por artistas negros contemporâneos a partir de biografias falhas, memórias rotas cheias de silêncios, as biografias visuais que compõem a mostra tratam-se de ficções, construídas a partir da interpretação e da fabulação crítica e histórica[5]. “Esses registros, em sua maioria, são ficções, porque você não conhece as imagens dessas pessoas e cada artista criou seus recursos para trazer esse corpo que nunca foi visto até esse momento histórico de ser retratado”[6]. Ao enfrentar de forma direta a política de apagamento das populações negras, a exposição Enciclopédia Negra fomenta uma visão mais inclusiva e plural do Brasil, revelando-nos ao longo de seis núcleos temáticos como é complexa, múltipla e densa a história do povo negro brasileiro, uma história que Jaime Lauriano afirma não ser só de luta pela emancipação e de trabalho forçado com a escravatura, mas uma história de formas de cultivo, de arte, de religião e de organização política.

Assumindo-se enquanto território de reunião de sintonias, a mostra mergulha-nos num universo concetual, estético e visual no qual predominam a variedade de media e diversidade de vozes artísticas, em retratos que se revelam cúmplices no sentido da liberdade e experimentação. Fotografias, desenhos, pinturas e esculturas preenchem as paredes da Sala de Exposições mediante um desenho expositivo e cenográfico cuidado, como nos revela o núcleo de retratos que, ocupando o espaço central da sala, se exibem em três mesas como se de um espólio documental e arquivístico se tratassem. À medida que percorremos a exposição, familiarizamo-nos com os diversos núcleos que a compõem: Negras minas; Projetos de liberdade; Personagens atlânticos; Religiosidades e ancestralidades; Artes e ofícios e Rebeldes. Dedicado às mulheres de origem africana, o núcleo Negras minas revela-nos a história de mulheres que exerceram o seu protagonismo, lutaram pela liberdade e resgataram a sua visibilidade, caso de Catarina, Josefa e Vitória, mulheres africanas reinterpretadas pelo artista Elain Almeida como protagonistas da revista de moda Vogue, numa obra pictórica que estabelece uma relação dos corpos negros com a sociedade contemporânea. Reafirmando a importância de ativistas, intelectuais, artesãos, artistas, cientistas, entre outros profissionais afro-brasileiros, descobrimos o núcleo Artes e ofícios, no qual encontramos o Retrato de Jandyra Aymoré, da autoria de Oga Mendonça, cantora de destaque da Companhia Negra de Revistas, a primeira empresa teatral do Brasil composta inteiramente por negros. O núcleo Rebeldes retrata personalidades que não aceitaram ser desumanizadas pelo processo de escravidão, caso de Malunguinho, líder quilombola da floresta do Catucá e símbolo na luta contra a escravidão, retratado de rosto coberto pela artista Micaela Cyrino, apresentando-se com uma metade de ouro e outra metade pele , pois como se canta pelas ruas de Recife, “Malunguinho é Rei! Malunguinho é Rei!”. Em Personalidades atlânticas, conhecemos representações de pessoas que refizeram as suas histórias num novo país, personagens negros que circularam por entre o espaço económico, político, social e cultural entre os continentes africano, europeu e as Américas. No núcleo Religiosidades e Ancestralidades, contactamos com líderes de religiões de matriz africana e afro-brasileira que cumpriram papéis diversos e contribuíram para fortalecer sentidos de comunidade e pertença. Projetos de Liberdade resgata utopias e expectativas de populações negras numa sociedade esclavagista; a este propósito, destacamos a história de Caetana, mucamba do século XIX, que recorreu ao sistema judiciário para anular um casamento forçado. A atitude persistente e resoluta de não aceitação de Caetana à imposição senhorial é retratada na obra fotográfica Caetana e nossos Nãos, de Juliana dos Santos, em que a boca da artista reencena o não da personagem, numa obra permeada por fragmentos, recortes e rupturas concretas e simbólicas.

Ana de Jesus, Joaquim Pinto de Oliveira, Xica Manicongo, Trajano Cunani, são vários os nomes e os rostos que a exposição Enciclopédia Negra nos dá a conhecer, a história viva de um povo e de personalidades afro-brasileiras que contribuíram para a construção da cultura e sociedade do Brasil. Como afirma Lilia Schwarcz: “A enciclopédia é um sonho utópico de que a gente traga a memória, uma boa memória, a memória como agência, memória como uma forma diferente de representação e representação é direito, é justiça, é presença, é inclusão e é participação”[7].

Até 4 de outubro, na Escola das Artes – Universidade Católica Portuguesa do Porto, com a curadoria de Flávio Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz.

 

[1] Composta por obras pertencentes ao acervo da Pinacoteca de São Paulo, a exposição inaugurada a 20 de junho na Escola das Artes da UCP estará patente até ao dia 4 de outubro de 2024.
[2] Cit. da intervenção de Lilia Schwarcz durante a conferência Escravidão e reparação: nosso passado do presente, que teve lugar no Auditório Ilídio Pinho (UCP) a 21 de junho de 2024.
[3] Gomes; Lauriano; Schwarcz – Introdução In “Enciclopédia Negra: Biografias Afro Brasileiras”. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, s/p.
[4] Idem Ibidem.
[5] Enfrentando o vazio deixado por séculos de historiografia que ignorou e obliterou as vozes, mentes e corpos dos negros, a escritora e académica de estudos afro-americanos Saidiya Hartman desenvolveu o método de “fabulação crítica” – alternativa teórica para exceder ou negociar lacunas dos arquivos de escravidão -, em que combina pesquisa histórica e de arquivo com teoria crítica e narrativa ficcional, comprovando a força da imaginação para desafiar e inverter o domínio das vozes e pontos de vista académicos brancos.
[6] Cit. da intervenção de Marcelo Campos, curador chefe do Museu de Arte do Rio, durante a inauguração da exposição Enciclopédia Negra no MAR, em 2022.
[7] Cit. da intervenção de Lilia Schwarcz durante a conferência Escravidão e reparação: nosso passado do presente, que teve lugar no Auditório Ilídio Pinho (UCP) a 21 de junho de 2024.

Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.

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