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Entrevista com Francisco Huichaqueo, artista, curador e cineasta mapuche

Francisco Huichaqueo é um artista, curador e cineasta mapuche. O seu trabalho foca-se na reparação, restituição e agência do património e memória mapuche. As suas intervenções decoloniais estiveram presentes em bienais e instituições internacionais como a Bienal de Berlim, a Bienal de Havana e o Museu Reina Sofía. No Chile, no Museu de Artes Visuais e no Museu de Arte Pré-Colombiana, entre outros, e em festivais internacionais de cinema como o Festival de Cinema Latino de Toulouse, o Festival Imaginative de Toronto, o Festival de Morelia no México, o Festival da Língua Materna em Washington D.C., e o Museu do Índio Americano. Atualmente, é professor na Faculdade de Humanidades e Artes da Universidade de Concepción no Chile e professor visitante 2023-2024 na Iniciativa de Bem Viver e Cura Coletiva da Universidade de Connecticut.

No âmbito da sua visita a Lisboa, conversámos sobre o desenvolvimento da sua prática e a missão com a sua comunidade. Francisco partilhou algumas das formas como a cosmovisão mapuche se manifesta através do seu trabalho e como esta se conecta com alguns dos desafios contemporâneos do museu como instituição. Iniciámos a nossa conversa imersos no som da “trutruca”, um instrumento de sopro milenar utilizado cerimonialmente pelas comunidades mapuche para evocar a calma, e assim, enriquecer o nosso diálogo.

MV: Tens uma prática extensa e reconhecida globalmente, na qual tens apresentado o teu trabalho em diferentes países e colaborado com instituições tanto no campo artístico como académico. Se olharmos para o início do teu caminho, como foi esse primeiro contacto com a prática artística?

FH: O que acontece é que não sabia que tinha começado. Isto começa no trabalho da horta com o meu pai, a horta familiar. A grande experiência artística tem a ver com esses momentos, com esses espaços-tempos de cultivar a comida e com a organização de semear. As minhas primeiras composições inatas, como criador com as mãos, e a aquisição de conhecimentos, foram dadas pelo meu pai. Também percebi a linguagem do espaço, da terra. O meu pai era muito respeitador do espaço e do lugar, transmitiu-me isso sem dizer nada, com gestos físicos e silêncios. Se tinha perguntas, fazia-as de manhã e ele respondia à tarde. Não havia necessidade de preencher o espaço de conversa. A verbalização não é a única linguagem entre os seres humanos, há outras formas de comunicar. Quando há conexão, gera-se um espaço protegido. Muitas vezes percebia o que o meu pai me comunicava de forma muito terna, no trabalho, no fazer.

Nos anos oitenta, cuidava da minha pequena horta, limpava a terra e conformava o espaço antes que o meu pai colocasse as sementes. A minha função era a de muitos outros no meu pequeno espaço na horta, num contexto de crise económica e mundial, local e chilena, enfrentando uma ditadura. Cultivar a comida era importante, uma necessidade, não um assunto romântico. Mas nessa necessidade aflorava a poética implícita na natureza que depois codifiquei na linguagem da arte. O meu mundo era muito pequeno, um lugar muito bonito e protegido. Lembro-me que o meu pai me levava a passear à beira do rio, onde comprávamos peixe. Um dia, vimos um senhor a pintar uma aguarela. Era um pintor de cavalete, filho de colónias alemãs na zona sul do Chile. Nunca tinha visto um pintor e não sabia que existia o ofício de artista. O senhor pintou uma aguarela sob a chuva. Observava a mistura de azuis e traçava na tela o céu que via. Disse ao meu pai que queria fazer isso, porque senti que a imagem tinha poder. Pessoalmente, esse momento impactou-me significativamente e senti que era algo que não devia deixar passar, de alguma forma tomei-o naquele dia e nunca mais o larguei.

No meu contexto, distinguíamos entre quem tinha possibilidades educacionais e económicas e nós, os trabalhadores. A arte era para os brancos. No entanto, eu também tinha direito. A minha mãe, com uma intuição especial, levou-me a uma escola de música financiada pela Câmara Municipal. Conseguimos uma bolsa, o que me permitiu aprender artes musicais europeias. Foi assim que experimentei sensibilidades que estavam dentro de mim e que de alguma forma se integravam positivamente, permitindo-me ver o mundo com uma banda sonora de fundo, enquanto trabalhava na horta em casa. Com o tempo, adquiri um estéreo pessoal e ouvia música enquanto regava a horta. Esta combinação cultural foi a minha escola. Mais tarde, tomei consciência e comecei a pintar, imitando o pintor de aguarela e copiando os grandes mestres. A minha mãe comprou-me um livro de arte, que pagou em dez meses, e eu memorizei-o inteiro. Pintava à luz de uma vela devido aos apagões, o que resultou em algo interessante. No sul do Chile, encontrei esta paixão.

MV: E depois desses primeiros contactos não só com a prática artística, mas também com as epistemologias ocidentais, como foi esse processo de reconexão com as tuas origens e saberes mapuche?

FH: Reconectar com o mapuche, num contexto de influências ocidentais, sempre foi um desafio. Lembro-me que nos chegou da pior maneira no meio de polaridades que nos diferenciavam. Sofremos racismo pelos nossos nomes indígenas e fomos discriminados tanto na escola como na sociedade.

A minha mãe não é mapuche; o meu pai, sim. Isto trouxe-nos discriminação na família e na comunidade. Um dia disseram ao meu pai que devíamos mudar o nosso sobrenome mapuche para evitar o bullying, mas o meu pai disse que nunca o faria, que devíamos tomar com orgulho o que nos foi entregue. Nesse dia, penso que tomei a consciência original e pouco a pouco fui esculpindo o orgulho e começando a levantar o véu social da discriminação que existe no Chile. A discriminação ainda é forte, mas a nossa valentia e a aquisição de ferramentas permitiram-nos despertar e tomar decisões com cuidado. Apercebi-me de que éramos um grande povo, perdemos muito mas mantivemos em segredo a nossa cosmovisão. E embora muitos membros da comunidade se tenham convertido ao evangelho, temos uma cosmovisão que atua como um vínculo ancestral que nos ajuda a não perder totalmente o que é nosso. É aí que o retorno à raiz se vive e se acolhe. Esta mensagem também é para diversos grupos. O povo mapuche tem uma conexão especial, manifestada em sonhos, que partilhamos regularmente de manhã à hora do pequeno-almoço para iluminar a sua interpretação, através da intuição mapuche.

E a arte foi depositando-se no meu corpo físico e no meu corpo espiritual com ferramentas que o território entrega e tomei-a como uma missão de vida com muito orgulho. Enfrentei momentos difíceis e complexos, mas também experiências espirituais mapuche que têm um alto valor para mim. O mundo mapuche tem muitas ferramentas novas e usamos-as como um mecanismo para ir semeando estas mensagens muitas vezes de resistência. Não queremos impô-las, apenas queremos que as conheçam e tomem consciência.

MV: Quando falaste da tua missão de vida referiste-te ao cine-medicina. Como defines este cinema e o que o caracteriza? Como se relaciona este cinema no contexto do museu?

FH: Como mapuche, homens e mulheres, crianças, idosos e idosas, adquirimos várias missões na vida. A minha foi a arte, que vi como um poder para recuperar a nossa cultura milenar roubada. Este roubo interrompeu o nosso fluxo de autonomia criativa e espiritual. Na sociedade moderna, quero resgatar e reparar essa interrupção histórica do nosso povo. Fiz filmes e exposições de outra forma para intervir e restaurar a nossa memória, apresentando a minha obra cinematográfica como “cine-medicina”, que se tornou a minha motivação.

O estado do museu colonial adoece pela falta de clareza porque pensa-se a partir da razão, deixando de lado o sentir espiritual que é o primordial na expressão da arte e, sobretudo, no que expõe da arte roubada de grupos indígenas do mundo. Ao ver o estado dos museus, com os seus debates sobre a nossa memória, vejo que estão na escuridão porque há fissuras e tristezas pelo sequestro da nossa memória mal gerida e interpretada. Então eu coloco-me lá, usando ferramentas modernas como filmes, música e poesia para curar de dentro para fora. Vejo a cultura moderna como uma vasilha quebrada pela história colonial. Para repará-la, devemos agir de dentro para fora, como um ato reparativo de cicatrização e instalar essa ternura na cultura moderna rejeitando a negação da nossa autonomia pelos estados neocoloniais. Esta missão urgente deve ser empreendida por todos com consciência.

MV: Agora, continuando no tema do cine-medicina, podemos falar um pouco sobre a missão do filme CHI RÜTRAM AMULNIEI ÑI RÜTRAM / O metal continua a falar?

FH: Bem, este filme tem um contexto muito específico, porque foi filmado para um contexto de museu, museu colonial, onde está albergado o nosso património e memória. Como dizem as pessoas dos museus, estão em penhor, não é? Como se diz? Em custódia. Mas nós nunca aprovamos essa custódia. Estes filmes foram feitos para uma exposição mapuche num museu pré-colombiano em Santiago, onde tudo o que é mapuche está guardado em depósitos atrás de vitrinas.

E desta vez, numa expansão territorial mapuche, como gosto de chamar, liderada por uma platera mapuche, o seu discípulo e eu, conseguimos exibir arte mapuche contemporânea, com 370 peças manufaturadas. A exposição incluía uma grande fonte de água acompanhada de ervas naturais chamadas “Menoko”, peças submersas em água e outras suspensas sobre ela. Instalámos arquivos fotográficos de mapuches castigados pelo cepo colonial. Estes filmes frescos dão voz aos artistas mapuches Clorinda Antinao e Antonio Chiwaicura no seu território. Esse filme foi feito para contextualizar a raiz e origem dessas pessoas, e por que fazem o que fazem como herdeiros naturais da ourivesaria mapuche. O Ocidente chama-lhe joia. Nós chamamos-lhe prenda, porque cada prenda tem uma função de uso espiritual, sendo usada por gente mapuche em contextos espirituais.

Na inauguração, realizou-se uma grande cerimónia que começou num monte de Santiago chamado “Wanglen”, que significa estrela. Houve uma marcha da comunidade mapuche de Santiago até ao museu. Eu esperei em silêncio junto com a autoridade mapuche para receber os artistas e a comunidade na inauguração do museu. Inaugurámos com muita gente, seguindo o nosso protocolo, como um ato de resistência e restituição do que está desequilibrado. Pela primeira vez, os mapuches fizeram discursos, o que deixou clara a nossa mensagem. O museu enfrenta o desafio de como continuar com isto. Nós, embora com menos poder, continuamos a tentar e a resistir para que se faça justiça histórica.

Nesse dia, a expositora Clorinda Antinao leu nos créditos da exposição a palavra “curador” junto ao meu nome. Respondi que não compreendia completamente, mas ela disse: “Você é, porque está a curar uma situação mapuche”. E nesse dia internalizei a minha função como um curador, mas curador mapuche. É diferente, porque se entende a partir de outros planos o que é curar. Então, estas ações concretas nos museus, que também chamo de expansões territoriais ou missões, atuam como antídoto para curar o museu colonial, são curas, são remédio.

Curador é quem cuida, quem repara a cicatriz, quem sopra o remédio. Por essa razão também faço cinema. Porque no cinema, a imagem é soprada para os olhos da pessoa. E o seu conteúdo colabora para internalizar e retornar o território ancestral ao povo mapuche. Se apresentares imagens dos rios, do vento, do som das aves, dos mares, ou o poder da pedra, as chuvas e os cantos mapuches, estes atuam como medicina sobre o humano, recebendo-a como o sopro de um “machi” ou guia espiritual.

MV: E se nos movermos um pouco para um dos teus filmes mais recentes, TRALKAN KURA / Pedra do trovão, podes falar um pouco dessa missão?

FH: Sim. No filme Pedra do Trovão, o conhecimento mapuche fala sobre o poder das pedras. Eu ainda estou a aprender, já que este conhecimento esteve oculto durante muito tempo. O meu nome, Huichaqueo, significa pedra alçada ou machado de pedra, um sílex usado no passado como machado de guerra, o que também tem uma conexão familiar antiga.

Tive a sorte de que este filme foi filmado num território ancestral dos meus parentes políticos, com a missão de acompanhar outra exposição num museu em Santiago. Este museu é um palácio restaurado de uma antiga família rica de princípios do século XX. Aqui, as tensões eram sobre como se exporiam as prendas mapuches antigas fora das vitrinas. Naturalmente, os protocolos de conservação não o permitem, mas apelei para que nos fosse concedida liberdade de representação. Assim foi como expusemos a nossa memória tangível livremente, acompanhada de uma vertente de água chamada “menoko” onde crescem ervas medicinais, com uma elevação de um “rewe” ou espaço medicinal cerimonial, feita por pessoas que podem fazer isso. Eu não posso, mas este trabalho em conjunto fortalece a autoria coletiva. Nela, eu represento essa coletividade.

O filme é interpretado por um menino que realiza uma dança mapuche, e o menino decide fazê-lo num espaço territorial dos avós que foi afetado por uma empresa de monoculturas. Então ele dança no lugar com a promessa de que essa missão, nas suas palavras, ia circular em outras partes do mundo como testemunho. E eu dei-lhe a minha palavra. Então, ontem escrevi ao seu pai para comunicar-lhe que essa obra está a ser exposta aqui em Lisboa e continua a percorrer o mundo como acordámos antes de vir.

As pedras de trovão, segundo o conhecimento antigo, vêm do espaço ou de vulcões, caem incandescentes e enterram-se em lugares específicos, frequentemente perto de praias. Algumas são meteoritos com magnetismo especial, e recolhem-se pelas suas propriedades curativas para sanar dores corporais, além de terem funções particulares na sociedade mapuche. Isto é o que sei sobre as pedras. É um conhecimento que estou a adquirir nos últimos anos. A vida leva-me a esta parte do conhecimento do que é nosso. Então, no filme soa o trovão. O trovão cura a terra dos avós do menino e ordena o pensamento.

Mar Vallejo (1997) é uma investigadora e produtora cultural natural de Bogotá, Colômbia. Completou o mestrado em Estudos Culturais na Universidade Católica Portuguesa. Atualmente, reside em Lisboa, onde desenvolve o seu trabalho no Hangar - Centro de Investigação Artística. A sua linha de investigação foca-se nas práticas decoloniais e nas epistemologias indígenas aplicadas ao setor cultural. Tem colaborado em projetos de investigação promovidos pelo Ministério da Cultura da Colômbia e na produção do Pavilhão Português na Bienal de Veneza. Recentemente, ganhou uma residência de investigação na Noruega no projeto "Arctic Routes, Southern Ways", que visa comparar os efeitos do colonialismo nas regiões árctica e do sul no âmbito do ensino superior e de instituições de arte.

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