Rémiges Cansadas: Samuel Silva é ornitólogo à escuta da poesia de Daniel Faria
Este é um texto atípico sobre uma exposição que acontece “em crescendo” – porque acontece na Brotéria e tem reverberação nas livrarias próximas. É possivelmente também um texto curto e injusto na sua força visual, forma, ritmo e semântica, dado o poema-objeto que lhe serve de ponto de partida.
Assumindo as consequências de ser narrador participante num texto crítico (de vos escrever a vocês leitores diretamente na primeira pessoa), desabafo: é um texto-confissão. Desconhecia o trabalho de Samuel Silva, e pouco ou quase nada das palavras de Daniel Faria – e não devia, mas iremos certamente a tempo desse mergulho numa tarde quente de agosto.
Na Brotéria, atrás da cortina que separa o vestíbulo de entrada da galeria, serpenteiam pelo chão cordas, cordas e mais cordas, ou talvez segmentos da mesma corda entrelaçados que dificultam o caminhar. Mareados ou apenas de amarras soltas, esperamos que a pupila dilate e tateamos entre os dois feixes de luz vermelha – a única luz da sala. Espraie-se a corda para a sala seguinte, não há defesas neste barco à deriva, mas há um farol visual. É um objeto em chumbo, suspenso sob uma luz projectante de baixo para cima. A sombra projetada no teto curvo desenha o contorno. Parece ser um fóssil marítimo desconhecido, um mineral estranho, um metal raro, um caracol vagaroso em pleno mês estival de “tituetes”, ou será a anatomia de uma cóclea (do grego kokhlia, que significa também caracol)… À saída, ao som de uma voz feminina que estrondosamente ecoou (subitamente) o verso “porque levas as flores para o norte se sei que ele virá pelos caminhos do sul?”, perguntei-me: que narrativa nos conta Samuel Silva?
Rémiges Cansadas é uma cortina negra. Mas uma cortina que desvela uma janela de oportunidade para a leitura da obra de Daniel Silva – para aqueles que, como eu, a desconhecem ou os outros que, embora a saibam de cor, podem agora re-ver. É uma exposição que provoca inquietação e curiosidade. Em três atos[1], este o último dos três, Samuel Silva fala-nos da dimensão espacial de um poema, do seu corpo físico além da sua estrutura (versos e estrofes) e revela profundo conhecimento das paisagens íntimas do poeta-monge. Silva analisa e interpreta a descoberta de um poema-objeto, O País de Deus, um poema inédito escrito em 1991 por Daniel Faria e oferecido ao seu amigo João Pedro Brito: “(…) um pote de barro decorado com motivos geométricos coloridos tapado por uma rolha de cortiça. No seu interior encontramos colocado sobre uma base de búzios um rolo de recibo em papel térmico com cerca de 42 metros de comprimento por 6 cm de largura pintado lateralmente de vermelho. Este rolo enigmático, fechado com dezenas de voltas de fio norte, revela a cada volta um longuíssimo poema escrito…”. [2]
Como objeto, O País de Deus é um memento ritualista, de celebração e de leitura. É também um ato performativo íntimo entre o leitor e o ouvinte (que são o mesmo). Abre-se cheirando a cortiça, desenrola-se tocando o áspero fio norte e o frágil papel, ocupa o espaço, lê-se a caligrafia guiada pela margem vermelha, depois ouvem-se em voz alta as palavras escritas e possivelmente escuta-se o mar profundo que adormece nas conchas.
Tudo isto se imagina, porque o poema é apenas um referencial estético, uma partida sem fim para uma reflexão em que Silva simula o voo cansado e cambaleante de uma ave marinha.
Samuel Silva refere que o primeiro contacto com a poesia de Daniel Silva foi pelo som (“ouvi antes de ler”). Talvez também seja esse o ímpeto que nos causa Rémiges Cansadas: a sonoplastia da palavra ou um cruzamento disciplinar entre a plasticidade da literatura e o objeto artístico.
Rémiges Cansadas de Samuel Silva, a partir da obra de Daniel Faria, e com curadoria de Álvaro Moreira, está patente na galeria da Brotéria até 7 de setembro.
[1] “Rémiges Cansadas é o terceiro e último momento de uma circunspeção multidimensional de Daniel Faria – Escuto o calcanhar do pássaro (Galeria Kubik, 2021) e Levitação (casa da Arquitectura de Matosinhos, 2021).” Lê-se no texto da folha de sala da exposição da autoria do curador Álvaro Moreira.
[2] In “A poesia multidimensional de Daniel Faria”, texto de Samuel Silva, 2022.