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Afinidades Eletivas

Um capricho do destino garantiu que o arqueólogo encarregado das escavações do Templo Mayor, ontológica arquitetura de Montezuma, último imperador asteca, também se chamasse Montezuma. São minúcias como esta que nos permitem perceber o alcance de uma teia temporal em largos ciclos repetida, embora nunca da mesma maneira. Seria o cientista a metempsicose do antigo monarca que, quinhentos anos depois, escava o próprio templo? Os astecas esculpiam seus calendários em discos de pedra, pois acreditavam num ciclo cósmico renovado a cada 52 anos. Também na Babilônia astrólogos marcavam em tabletes de argila a geometria dos eclipses e o arco de Vênus, pensando prever as suas trajetórias e os eventos com elas trazidos, pois também a vida terrena respeitava ciclos — as fases da lua e as marés, as estações e os costumes das feras.

Ou teria sido mera coincidência de alcunhas, sendo o tempo nada mais do que inconsciente entropia que corrompe a integridade das coisas, e o humano não um joguete do acaso, mas criatura lançada à própria sorte, num cosmos sem lei nem rumo? Se antes as cartografias celestes assimilavam o logos cósmico para costurar o fortuito humano à perenidade natural, na modernidade o anseio é outro: sobrepor-se à uma natureza já desencantada, separando-nos num mundo à parte onde persistem apenas as regras que o humano cria para si. Espera, assim, substituir o cárcere cíclico de uma vida que sujeita-nos aos desígnios naturais por um tempo linear, manifesto não pelos ciclos das estações, mas pelo contínuo progresso da humanidade.

Entre calendários astecas e pavilhões industriais, horizontes estelares e máscaras radioativas se costura a mostra Memórias, Pesadelos e Inquietações de Eduarda Rosa, que emprega o método da colagem para compor um mosaico de imagens não ao todo distinto de outro protagonista da modernidade: a enciclopédia, cujo intuito é instituir uma tradução racional do mundo, que é tanto o seu reflexo quanto superação. A artista aproveita esta distância crítica e espírito arquivista para tensionar os símbolos culturais do passado e do presente, e sugerir outros para o futuro. Suas obras estão repletas de mapas astrais ubíquos em cosmovisões passadas, objetos a nós banais como mesas e armários, mas que no grande esquema da mostra adquirem qualidades épicas, e imagens apocalípticas que sinalizam possíveis desastres por vir. Busca, assim, compreender aquilo que fermenta o íntimo do humano que quis utilizar o mundo para transformar-se, ele próprio, num deus. Mas a artista realiza, não um panegírico da modernidade, e mais uma elegia que visa nos perguntar, talvez, a maior questão dos últimos séculos: somos nós os donos do nosso destino?

Há aqui um ímpeto científico, um respeito à clareza, que preservam a integridade de seus recortes num método distinto, por exemplo, do papier collé cubista, que entendia a prática da colagem como o manipular subjetivo das formas. Ao mesmo tempo, as associações pela artista ensaiadas respeitam mais o devaneio íntimo da memória que o arquivismo objetivo dos fatos vividos. Em sua obra Série A, vemos fontes da juventude, calendários astecas, pavilhões industriais, navios, pontes e aviões, mobílias e redes de pesca, animais enjaulados, fungos e bactérias, espécimes exóticos, faróis e panópticos, desenhos anatômicos e palcos de teatro, tudo isto apresentado numa conflituosa simultaneidade que é o quebradiço reflexo do espírito de nossos tempos. Em recortes de cavalos a correr lembrei-me do moderno Mefistófeles, que diz a Fausto: “Se eu posso comprar seis cavalos, a força deles não se tornará a minha? Posso correr com eles, e ser um verdadeiro homem”[1]. Com seus pássaros, pensei tanto em Darwin quanto em Villard de Honnecourt, talvez precursor desavisado tanto da enciclopédia quanto da arte renascentista, quando em seu caderno passou a desenhar não os arquétipos divinos só no íntimo revelados, mas as imagens do mundo externo e invenções de inovadoras ferramentas.

Em sua obra Sem Título encontramos mapas astrais que conservam tanto o nosso intento em sistematizar o fluxo estelar quanto o estupefato encanto cósmico de outrora. Tal interessante contraste encontrou seu ápice, creio, na tentativa escolástica de categorizar a hierarquia dos anjos, cuja língua arcana operava também a conhecida Música das Esferas, sinfonia gerada no deslizar planetário, inaudita aos parcos ouvidos humanos. Entre o ímpeto por poder e a sua inerente fragilidade, marcha a busca moderna por redenção, que inclusive conserva o mesmo temperamento linear da Bíblia: inicia no desamparo que arranca o humano do seio divino e termina com o Juízo Final, que nos abre as portas do paraíso — seu arco cômico é meio-círculo apenas, e tão utópico quanto a dialética moderna.

Talvez por isso haja uma certa linearidade em sua Série C, que avança no tempo para se utilizar de recortes renascentistas. Mais contrastes aqui: se as colagens figurativas são em preto e branco, ao seu redor a artista pinta linhas geométricas em manchas de cor inexpressivas que se apropriam dos vértices das molduras para irradiar em ângulos e padrões evocativos dos vitrais góticos. Se as cenas são religiosas, os desenhos de Rosa conservam uma exatidão científica de abordagem fleumática sobre o antes glorioso milagre da luz. Este vínculo religioso entre o figurativo e o abstrato evoca a busca iconoclasta de artistas modernos, como Malevich, por novas representações espirituais fora da iconografia católica. Também considerável é o manuseio compositivo da série, começando-a com Eva e terminando-a com Adão. Seria um comentário sobre os arquétipos masculino e feminino que convivem nas diligências humanas? Eva como a origem de nossas investidas intelectuais, quando, ainda em humildade, cultuávamos a sabedoria de uma natureza que, ao invés de se opor, se adapta. E Adão como grande objetivo do nosso ímpeto controlador, que abdicou do contato com o natural em prol de uma intransigência civilizatória. Não à toa, numa das obras da Série A, em meio a horizontes celestes, temos a presença tanto de matronas em longos vestidos, uma das quais sustentando, titânica, o globo sobre a cabeça, quanto soldados masculinos de baionetas nas costas e botas de couro.

Ante a ameaça do colapso ecológico, o doloroso açoite das intempéries tenta frustrar o ímpeto positivista moderno. Em sua Série: Outros Mundos, exibem-se imagens de uma natureza indomável, trovejando sobre as frágeis estruturas humanas como tímidas embarcações encalhadas numa praia arruinada ou pontes tomadas por nevascas. Sobre elas a artista desenha agudas manchas pretas que lembram o apreço de certos artistas modernos pelas formações rochosas dos Alpes, acidentes geológicos cuja estrutura estilhaçada impõe um tom trágico aos projetos humanos — como na pintura O Mar de Gelo de Caspar Friedrich, que, não à toa, revela os destroços de um navio entre pináculos glaciais de pungência gótica.

A sequência termina com a citação “à conquista de outros mundos”. Seriam os mundos transformados pelo Antropoceno, desenlace natural do projeto moderno? Mundos intergaláticos à espera de nossa chegada, quando este tornar-se inviável? Ou mesmo os mundos metempsicóticos dos astecas, renascidos após o término deste ciclo, quando os astros errantes retornassem aos seus pontos originais? Mais importante talvez seja a palavra “conquista”, passível de ser entendida tanto como domínio físico quanto a superação íntima daquele que abdica do controle dos arredores para, em meio ao caos, dedicar-se ao controle de si. Também filhos da modernidade, os primeiros alpinistas são desta segunda conquista adeptos, jovens românticos lançados às cordilheiras dos Alpes para, na vertiginosa altitude onde funde-se terra e cosmos, sentir a amplitude expandir o espírito. Ali, quem sabe, descobriram se a vida não passa de uma teia de relações previsíveis ou se a existência contém outro tipo de substância que convoca o humano a moldar o seu próprio destino.

Memórias, Pesadelos e Inquietações, de Eduarda Rosa, está patente no Coletivo Amarelo até 7 de setembro, com curadoria e texto de Cristiana Tejo.

 

[1] Goethe In. Berman, Marshall. (1986) Tudo o que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, p. 49.

Tomas Camillis é autor e pesquisador baseado em Lisboa. Escreve narrativas fictícias e ensaios no contacto entre arte, filosofia e literatura. Possui mestrado em Teoria da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nos últimos anos participou de pesquisas, lecionou cursos em institutos culturais, auxiliou na organização de simpósios e publicou em revistas especializadas. Atualmente colabora com o Serviço Educativo do MAC/CCB e com a revista Umbigo.

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