Técnica mista sobre papel #3 – Dois em um sur l’herbe
Há uns dias, numa ida ao supermercado, vi um senhor que estava visivelmente confuso por comprar um champô cuja embalagem dizia ser um produto 4 em 1. A senhora que estava imediatamente antes dele na fila para pagar dizia-lhe que devia ser champô, amaciador, gel de banho e mais alguma coisa além disso. Rematou, com uma apologia ao produto, dizendo que nesta altura das férias até dá muito jeito. Numa embalagem, cabe tudo. O senhor desabafou que, da maneira que as coisas estão, já nem se fazem 2 em 1.
Concordo. Já não se fazem 2 em 1.
Nos trâmites da arte, que é o campo que interessa aqui entrever, alguma vez pensámos em obras como 2 em 1? O que é um 2 em 1 em arte? Parecem-me existir duas abordagens possíveis a esta questão: um 2 em 1 técnico, e um 2 em 1 temático. O 2 em 1 técnico relacionar-se-ia com duas técnicas artísticas que ao confluírem dariam o resultado de uma só obra. Em vez de champô e amaciador, o clássico 2 em 1, podemos pensar em pintura e escultura num só, escultura e vídeo num só, fotografia e pintura num só e por aí fora. Existe esta possibilidade técnica? Existe. Os 2 em 1 em arte antes das diluições disciplinares dos anos 70 do século XX existiam, mas não eram nomeados. Ou seja, sabemos de um conjunto de obras que eram abordagens inovadoras à escultura ou à pintura, que pensavam os limites dos espaços de percepção e exposição — onde e como —, assim como as diferentes escalas e dimensões. Mas só muito recentemente receberam nomenclatura técnica per se: veja-se o caso da instalação ou site-specific, ou a autonomia de técnicas que se consideravam documentais para serem também incluídas nas definições da arte, como a fotografia ou o vídeo. Nada disto é inovador, mas não deixa de haver frescura em notar que o campo expandido da Rosalind Krauss, pode ser, afinal, apenas entendido como um combo 2 em 1.
O 2 em 1 temático, por sua vez, é quando dois temas, duas ideias, dois conceitos (essa magnânima palavra abolida dos discursos artísticos por ter sido sobre-usada) são abordados e fundidos numa obra só. Quantas obras não existem que têm mais do que uma possibilidade de leitura, uma ideia que surge pela reflexão de outra, dois temas que não parecem fazer sentido até lermos uma legenda, um título…
Esta questão do 2 em 1 técnico e temático, uma reflexão auto-imposta e que não tem de ser necessariamente verdadeira, levou-me até uma obra. Uma obra que poderia incluir nestes escassos e verdadeiros 2 em 1. No dia em que visitei os Limões em Férias de António Dacosta, tive a felicidade de ver outra obra também raramente exibida na mesma exposição. Le déjeuner sur l’herbe, de Ana Vieira. Este déjeuner sur l’herbe tem por mote o primevo dos déjeuners sur l´herbe. Esse mesmo, Le déjeuner sur l´herbe (1863), pintura a óleo de Edouard Manet, à vossa espera no Musée d’Orsay em Paris. A pintura de Manet representa uma cena de um almoço ao ar livre com quatro personagens. Dois homens vestidos a conversarem, uma mulher que aparece em pano de fundo a banhar-se num lago, e, em primeiro plano e a destacar-se, uma mulher nua que parece participar da conversa, mas fita directamente o espectador da obra. À sua frente encontram-se o que parecem ser as suas roupas, um chapéu, bem como uma cesta, um pedaço de pão e alguma fruta. O contraste entre os homens vestidos e a mulher despida é principalmente notório pela condição lumínica da pintura. Vestidos em tons escuros, os homens diluem-se na sombra verdejante que os parece acolher, contrastando a pele nua e clara da mulher que sobressai desta composição quase monotonal. Apesar de parecer um tema aparentemente displicente ou mundano, a dimensão da tela é imponente e relevante: 207 x 265 cm. Uma escolha que foi premeditada. Uma tela desta dimensão estaria habitualmente reservada para temas maiores, como a pintura histórica, uma cena importante a ser assinalada, ou algum evento religioso ou político digno de ser perpetuado. Não o que parece ser um mero almoço en plein air, numa displicente atmosfera convivial. Fazia parte da ruptura que Manet pretendia fazer da pintura convencional, provocando as audiências e o sentido de propriedade sobre uma pintura, uma obra com pinceladas mais imediatas e menos acabadas, uma obra que foi rejeitada pelo júri do Salão de Arte desse mesmo ano.
Ana Vieira retoma essa pintura. Passa a existir Le déjeuner sur l’herbe de Ana Vieira, de 1976. Não se trata de uma homenagem, mas de um trabalho processual e de reflexão sobre uma muito icónica pintura. Ana Vieira estende um plano de tecido no pavimento. Projecta uma reprodução da pintura original, com dimensões muito próximas da obra a que se refere. Só este gesto já nos permite compreender a cena como aparentemente foi representada — no chão, sem plintos, sem distâncias. As personagens estão mais próximas de nós. Como se fosse um piquenique que decorre mesmo ali. De seguida, enquanto ainda nos habituamos a ver a pintura num plano horizontal, começamos a perceber outras volumetrias. Perscrutamos a cena e deparamo-nos com objectos que foram colocados estrategicamente: um cesto de verga, garrafas e copos de vidro, pratos de cerâmica, fruta. Uma paleta de tinta. É como se a cena ganhasse vida enquanto a pintura continua plana. Nos recortes dos volumes dos objectos, há curvas e apropriações da imagem que está projectada. A pintura de Manet ganha vida através desta instalação. Mas a instalação não é a pintura de Manet, e a obra de Ana Vieira não poderia existir sem a reprodução da pintura de Manet. Numa obra, cabe tudo. É um 2 em 1. Sur l’herbe.
Le déjeuner sur l’herbe (1976) de Ana Vieira pode ser vista até dia 26 de Agosto de 2024 na exposição Hoje soube-me a pouco, patente no MAAT — Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa.
Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.