Madrugada: A Alvorada ou o Crepúsculo da Democracia?
A segunda Bienal Internacional de Joalharia Contemporânea de Lisboa já está a decorrer em vários espaços da capital. É difícil imaginar, até para artistas, designers ou arquitetos contemporâneos, o quão singular é a joalharia contemporânea, um mundo de descobertas, de engenho técnico inusitado, do recurso a materiais alternativos, de peças por vezes quase impossíveis de usar. Mas estas não são criadas apenas como acessórios para si. São-no para falar, afirmar, manifestar e gritar bem alto que a joalharia do século XXI não deve ornamentar irracionalmente os seus donos e competir entre si pela pureza do diamante ou pelo número de quilates. Numa época de problemas globais, de catástrofes humanitárias à escala planetária, de conflitos políticos, de crises ambientais e de uma maior ênfase nas ideias pós-humanistas, não podemos dar-nos ao luxo de ficar em silêncio. A joalharia passa a ser um instrumento de reflexão e de abordagem aos problemas atuais.
Cada Bienal possui um tema. Em 2021, na primeira edição, a iniciativa intitulou-se Cold Sweat, uma reflexão sobre as consequências e o impacto da pandemia.
Agora, a Bienal tem o título Madrugada e é dedicada à joalharia de cariz político. O tema do evento incide na esperança e na crença do raiar de um novo dia, evocando os acontecimentos de há 50 anos em Portugal, quando a revolução irrompeu e mudou radicalmente o rumo do país. Ao longo de mais de 20 exposições espalhadas pela cidade e um colóquio composto por personalidades, escritores e teóricos da joalharia contemporânea de todo o mundo, foi concedida a liberdade de expressão sobre os vários domínios e consequências da política: poder, força, manipulação, emigração, opressão, hierarquia, desigualdade, entre tantos outros.
Joias Para a Democracia, uma das principais exposições, é consagrada ao papel das mulheres na consolidação da democracia. Patente no Museu do Tesouro Real, na Ajuda, é um tributo a mulheres de diferentes países e profissões, uma homenagem prestada em forma de joias a 44 mulheres em particular, desde a primeira Ministra das Questões Femininas da Áustria até às mães e avós das designers de joias. Quem de nós já ouviu falar de Catarina Eufémia, operária agrícola alentejana, assassinada aos 26 anos durante uma greve de trabalhadores em 1954? Será que temos noção da coragem de Clarice Herzog, que processou o Estado brasileiro pelo homicídio do seu marido, o jornalista Vladimir Herzog, durante a ditadura militar em 1975? A exposição pode ser infinitamente analisada e ultrapassa em muito qualquer mera lição de história sobre os direitos das mulheres e o seu heroísmo.
Madrugada é outra das grandes exposições. É ao mesmo tempo uma visão caleidoscópica da joalharia mundial e uma narrativa estruturada em vários capítulos, como Memórias, Vozes de Protesto, Fronteiras, etc.
A joalharia, objetos e miniaturas de mobiliário em arroz e cobre de Clementine Edwards exploram a relação entre o homem e estes materiais. O arroz e o cobre enquanto recursos e guarda-memórias – como podemos usá-los com mais cuidado? A tradicional boneca russa Matryoshka, que pode conter em si mesma até 50 réplicas menores, foi sagazmente encenada como um novelo BDSM (Matruoshka) na obra de Anna Avits.
Uma sala inteira de Madrugada é dedicada à espantosa e assustadoramente rica investigação documental de Vivi Touloumidi sobre a forma como os nazis, durante a Segunda Guerra Mundial, categorizaram aqueles que consideravam “estranhos” e “outros”. Cada “casta”, desde os homossexuais aos antissociais, tinha as suas próprias designações e insígnias elaboradas burocratas Nazis, que eram posteriormente ajustadas até aos mais altos cargos, incluindo o do próprio Himmler. A investigação de Vivi, em curso há vários anos, aborda a força de uma insígnia, não como peça de joalharia, mas como carimbo, estigma, e o seu papel na opressão humana.
A exposição Madrugada, que reúne o trabalho de quase 100 artistas, está no Palácio dos Condes da Calheta até 22 de setembro.
Além do programa principal, a Bienal inclui muitos acontecimentos paralelos organizados por grupos de joalheiros, escolas e associações. Uma dessas exposições é Radical Softness, dedicada ao trabalho dos joalheiros estónios. “Vamos usar a delicadeza para derreter a rigidez, diluindo através da empatia as lutas pelo poder”, afirma Tanel Veenre, curadora da exposição. Tanel estabelece a analogia entre uma espécie de tolerância e empatia cristãs e o fenómeno físico em que um material pode ser deformado sob determinadas forças, regressando depois ao seu estado original. Serão as pessoas de nacionalidades e culturas opostas assim tão díspares? Onde reside a linha ténue que separa a aceitação e a rejeição de alguém de outra cultura ou contexto? Será que os conceitos de mentalidades diferentes e de determinismo geográfico sequer existem? O projeto – apresentado no interior de uma igreja – levanta questões sérias e extremamente pertinentes.
É intrigante constatar que várias exposições foram acolhidas em igrejas. O que motivou esta opção? Será que estamos à espera que poderes superiores decidam por nós? Ou será que joalheiros querem libertar-se do estereótipo do conservadorismo da igreja enquanto instituição? Seja como for, o contraste entre a arquitetura barroca, a atmosfera da eucaristia e as afirmações arrojadas e rebeldes é, inegavelmente, uma eficaz estratégia curatorial. Por exemplo, na Igreja de Nossa Senhora de Oliveira, foram expostos trabalhos de alunos do Curso de Joalharia & Ourivesaria da Academia de Belas Artes de Munique: as peças de joalharia estavam debaixo de uma secretária coberta com uma toalha de mesa, obrigando os visitantes a sentarem-se no chão e a procurarem os “tesouros” sob o denso tecido.
A Esperança, tema dominante da Bienal, foi magistralmente ilustrada pelos participantes na masterclass Hope, conduzida por Lin Cheung, joalheira e professora na Central Saint Martins. Foram dias de intenso e aturado trabalho, desde diálogos a pesquisas, reflexões e práticas. O que é que nos dá esperança, sensações de otimismo e desespero? Ao trabalhar com materiais aleatoriamente dispostos em sacos por Lin (estes continham peças partidas e novas, e outras ligeiramente usadas, obtidas junto de vários joalheiros), os participantes no workshop incutiram uma nova vida, uma espécie de esperança, nestes materiais. O workshop culminou numa série de ferramentas artísticas de joalharia para ajudar as pessoas a superar aquilo que as incomoda. Não são conceitos abstratos como a guerra, a fome e a opressão, mas sim fenómenos com os quais nos debatemos no quotidiano e sobre os quais podemos fazer qualquer coisa: lixo nas ruas, pessoas que furam filas, conversas demasiado altas em locais públicos… Os resultados deste projeto de investigação foram apresentados na Ar.Co.
À semelhança de todos os grandes eventos, o tema da Bienal de Lisboa foi previamente definido, ainda antes de 2022. A competência curatorial de antecipar um tema relevante é notável. Infelizmente, o tema da política e da esperança acabou por ser bastante oportuno, nos dias que correm. Ao celebrar a vitória da democracia em Portugal há 50 anos e, em geral, os valores democráticos da Europa que a União Europeia fomentou durante mais de 30 anos, perguntamo-nos: será que nos podemos sentir seguros hoje? A invasão maciça da Ucrânia pela Rússia, a agudização dos conflitos no Médio Oriente, a transferência de poder para a direita na Europa… Ao olharmos para os raios de sol que hoje banham a terra, podemos saber se se trata de uma alvorada ou de um crepúsculo?