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Mutantes e Portugal Ano Zero: livros de fotografia da revolução – Duas exposições coletivas no Centro de Arte Oliva

O Centro de Arte Oliva inaugurou simultaneamente Mutantes – a partir da Coleção Treger Saint Silvestre –, com curadoria de Andreia Magalhães, e Portugal Ano Zero: livros de fotografia da revolução, comissariada por José Luís Neves, Luís Pinto Nunes e Susana Lourenço Marques. Aparentemente distintas, o que no nosso entendimento as une é o mote da liberdade, nas suas mais variadas aceções, como a criativa, a individual ou a de um povo. Se em Mutantes são expostas obras que figuram animais, plantas e seres orgânicos imaginários, em Portugal Ano Zero é apresentada uma seleção inédita de livros com trabalhos de fotógrafos portugueses e estrangeiros, enfatizando a prolífica prática editorial que emergiu no pós 25 de Abril de 1974.

Mutantes desenvolve-se através da Coleção Treger Saint Silvestre, uma das mais ricas de Arte Bruta, Arte Singular e arte contemporânea. Demonstra obras onde figuram seres mágicos, efabulados e mitificados, assim como outras representações da botânica e diferentes cosmogonias, propondo uma ecologia alternativa, numa abordagem renovada sobre uma temática premente da atualidade – a relação da humanidade com o meio ambiente.

Partindo de Porquê Olhar os Animais (2009) do autor inglês John Berger (1926-2017), o projeto expositivo permite pensar sobre o facto de que, ao longo dos séculos, a nossa ligação com os animais – subentendendo-se a natureza – tem vindo a degradar-se. Tanto que, inicialmente, os animais entraram nas nossas vidas não apenas como alimento, roupa ou instrumento, mas como “mensageiros e anunciadores de promessas”[1], com “funções mágicas, às vezes oraculares, às vezes sacrificiais”[2]. Na contemporaneidade, os animais são muitas vezes reduzidos a bens de consumo, comodidades, espetáculo. De acordo com a folha de sala, “Neste ‘mundo natural’ psicadélico e ficcionado, com entes saídos de fábulas, mitos e visões mágicas, é-nos apresentada uma ecologia alternativa que nos faz pensar sobre a nossa própria condição de seres vivos”.

A exposição está distribuída por núcleos agregados pelo design expositivo, do qual enfatizamos a sinalética disposta no chão, tal como o design gráfico que a acompanha, concebido pelos R2. Os títulos de cada grupo são sugestivos, desde Sopa Primordial a Punks, ou a Voadores e Flutuantes, num interlaçar de obras com tipologias distintas, materiais diversificados, padrões e cores estimuladoras da nossa perceção sensorial.

Em Quimeras e pesadelos, a escultura Rombiège à laile cassée (2008) de Murielle Belin (França, 1976), feita em taxidermia, terra e tinta de água, antropomorfiza uma ave, dando-lhe uma cara e uma expressão de alento. Nos Funkadelics, a escultura em barro me and masato going to the swimming pool and putting on swimming suits (2018) de Kazumi Kamae (Japão, 1966) é uma espécie de ser tricéfalo cinzento com saliências agudas que ora nos diverte, ora nos repugna. Por outro lado, a escultura que figura um animal amarelo, produzida em madeira e materiais recuperados, Sem título (2003) de Hans Verschoor (Holanda, 1947-2011), em Outros Mundos, demonstra uma candura e uma simplicidade genuínas. Todavia, no conjunto E para sempre canta a floresta, somos absorvidos pelos desenhos em traço fluído de padrões ricos e coloridos, com vegetação e animais de Patrick Chapelière (França, 1953). Em Propagação, mergulhamos no emaranhado de West pool [propagation] (2010) de Tadashi Moriyama (Japão, 1979). E o acrílico de António Saint Silvestre (Moçambique, 1946) Rio Negro (c.1990) faz jus ao núcleo onde se encontra, Camuflagem, pois é composto como uma espécie de leque, em que, ao nos movermos, são reveladas duas composições diferentes, de uma forte coloração e exotismo.

No grupo São os últimos John Berger, os desenhos a grafite e lápis de cor de Alireza Maleki (Irão, 2002), figurando matadouros, colmatam a premissa de Mutantes, realçando como matamos animais diariamente, de modo industrializado, serializado e esterilizado, desprovidos desse encantamento mágico, místico e oracular que tínhamos em relação ao meio ambiente.

Por último, ainda importa ressalvar que o projeto curatorial foi pensado juntamente com a equipa de Mediação e Participação do Centro de Arte Oliva, resultando da instalação na exposição do projeto As Sementes Discordantes de Coisas Desconexas. Um local de experimentação, com um programa de atividades públicas, tendo como temáticas fundamentais a mutação, a metamorfose e a imaginação.

Portugal Ano Zero: livros de fotografia da revolução é um dos 45 projetos apoiados pelo programa Arte pela Democracia – iniciativa da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril em parceria com a Direção-Geral das Artes. Distingue-se pela apresentação de um vasto número de publicações sobre a Revolução dos Cravos, com fotografias de autores portugueses e estrangeiros, de coleções privadas e públicas, nacionais e internacionais. A par da exposição de projetos artísticos criados segundo os livros mencionados, estão simultaneamente expostos trabalhos de artistas consagrados, como Alexandre Estrela, Fernando Calhau ou Lisa Santos Silva.

O ponto fulcral do projeto expositivo, constituído pelas edições, conforme o texto que o acompanha, percorre “diversos momentos da revolução, as movimentações contrarrevolucionárias que emergiram durante este período, a documentação recorrente de práticas de arte de rua e protesto, o processo da reforma agrária e o papel da mulher nos primeiros anos da revolução”.

Através das muitas páginas que nos são apresentadas, vamos percorrendo as imagens de autores que acompanharam a queda do Estado Novo e o processo que levou à democracia, renovando o nosso olhar a cada nova perspetiva, sobretudo a partir dos pontos de vista dos fotógrafos estrangeiros. Destacamos Grândola: Reportagen aus Portugal (1976) de Jochen Moll; Portugal 1974-1975: Regards sur une tentative de pouvoir populaire (1979) de Guy Le Querrec; Ombre Rosse (1975) de Tano D’Amico; Jovem Portugal: After The Revolution (1977) de Jason Lauré; Bewustwording in Portugal (1978) de Arno Hammacher; Iberische Idylle [Idílio Ibérico] (1985) de Bart Sorgedrager, publicado na Crónica Feminina; e ASAHI Camera (1976) de Fusako Kodama, apenas para citar alguns exemplos. Salientamos, também, a projeção do documentário Portugiesischer Frühling [Primavera Portuguesa] (1975) da cineasta alemã Sabine Katins, produzido pela televisão da RDA, com testemunhos exclusivos de agentes da PIDE detidos na cadeia de Peniche.

No que diz respeito à mostra de trabalhos produzidos através da escolha das publicações em exibição, Pedro Augusto apresenta a instalação sonora Diário de Gravação (2024), através do livro/vinil Uma Certa Maneira de Cantar (1977). Dinis Santos exibe uma série de fotografias partindo de calendários das Casas Clandestinas (1994) do Partido Comunista Português. E Tiago Madaleno mostra Paredes Brancas (2024), inspirada no documentário da BBC White Wall in Alentejo (1977). Uma impressão giclée em papel de parede, dos cantos de uma televisão, com alguns fotogramas “distorcidos” – obra repensada, devido à quantia avultada pedida pela Getty Images (atual gestora do arquivo da BBC) para a apresentação de um excerto de 4’05’’ minutos sobre a peça de teatro encenada por crianças no Centro Popular de Castro Verde.

Em Portugal Ano Zero, a atribulada luta pelos direitos da mulher nos primeiros anos da revolução não foi descurada. Podemos ver A cabra não é cega (1976) de Lisa Santos Silva, com duas fotografias – numa, a artista está vendada; na outra, com a mão na boca. E o livro Revolução e Mulheres (1976) de Maria Velho da Costa, com fotomontagens de Lisa, acompanhado pela leitura do texto no programa Perfil de Alexandre O’Neill e Rui Brito na RTP (12/07/1978), um forte testemunho destes tempos.

Por último, não podíamos deixar de mencionar o vídeo Merda (2006) de Alexandre Estrela, o filme Paredes Pintadas da Revolução Portuguesa (1976) de António de Campos e a instalação Sinais (1976/1997) de E. M. de Melo e Castro, obras com referência à arte de rua e de protesto. Igualmente, a entrevista de José Ernesto de Sousa a E. M. de Melo e Castro no programa Encontro da RTP (03/07/1976), duas figuras de destaque da arte portuguesa do pós 25 de Abril de 1974.

Mutantes está patente até 27 de abril de 2025 e Portugal Ano Zero: livros de fotografia da revolução até 15 de setembro de 2024 no Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira.

 

[1] Berger, J. (2021). Por que olhar para os animais? São Paulo: Editora Fósforo. p. 9.
[2] Idem.

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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