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Mais um título para a contemporaneidade

Pela primeira vez, a Fundação Beyeler transformou o seu museu e o seu parque numa mostra experimental, onde obras individuais estão interligadas com o acervo, criando uma visão extremamente ousada e sedutora.

Começou como Summer Show, alterou-se logo para Dance with Daemons, em seguida foi Home of the Stranger e agora, enquanto escrevo, leio no site da Fundação que está anunciada como The Lateness of the Hour. E outros virão: Melting Mirrors, Echoes Unbound, Ghost Dreams, All My Love Spilling Over

Nunca se viu uma exposição trocar tanto de título, mas neste caso a comunicação assume plenamente a sua diferenciação; inclusive, a mostra não se incomoda de todo com os paradigmas fixos aos quais estamos acostumados e dentro dos quais funciona a maioria das instituições do mundo, receosas por não terem uma bom impacto ou uma qualquer recepção satisfeita em termos de público.

Estamos em Basileia, onde a Fundação Beyeler apresenta – formalmente até ao dia 11 de agosto, mas quem sabe se essa data de encerramento será mesmo verdadeira – a melhor exposição de 2024 até agora – isto é, de acordo com a minha opinião, a qual já discuti com vários colegas que não acharam o Summer Show (eu gosto de chamá-la assim) uma exposição bem resolvida. Porém, após a sociedade líquida que já está gaseificada, digam-me: quais são os padrões para definir uma mostra “solucionada”?

O atual curador da Bienal de Veneza, Adriano Pedrosa, questionou-se também sobre esse assunto, escolhendo deixar a sua exposição cheia de aberturas em termos de pensamentos, possibilidades e sobreposições entre obras e temas.

Melting Mirrors, na Beyeler, representa tudo isso da melhor forma possível, dado que nos encontramos na próspera Suíça, no âmbito de uma das coleções mais deslumbrantes do mundo, cuja curadoria – neste caso específico – tem tudo a ver com a “série A” do mundo da arte global: Sam Keller, diretor de 20 edições da Art Basel e designado pelo próprio Ernst Beyeler como diretor da sua fundação, Hans Ulrich Obrist, Mona Mekouar, a colecionadora espanhola Isabela Mora e os artistas Tino Sehgal, Philippe Parreno e Precious Okoyomon.

O conceito? “Estimular a liberdade artística, o intercâmbio entre disciplinas, a responsabilidade coletiva”. Seria insólito se esta mostra não fosse concretizada de uma forma perfeita na vida real, aliás, mais propriamente na vida encantada que pode experimentar quem escolher apurar os seus sentidos em cada sala do museu.

De facto, Dance with Daemons precisa do nosso tempo, necessita da nossa paciência, da capacidade de deixar do lado de fora – da cortina de pérolas verdes de Felix Gonzalez-Torres – as pressas e os sentimentos de déjà-vu que permeiam os olhos e o cérebro de quem se habituou a ver arte demais.

Segundo as indicações da organização, “a mostra foi concebida como um organismo vivo, mutante e intrincado, dentro do qual os participantes contribuem com as suas sugestões para cada fase da construção e do desenvolvimento do projeto”.

À entrada, deparamos com vários pregos à vista nas paredes – “Inacreditável, esse descuido”, critica uma famosa crítica. Poderia parecer uma performance encenada por Tino Sehgal. Seguidamente, passa um carrinho puxado por dois homens de luvas brancas, vigiado por um guarda. Carrega Humboldt Current, 1951/52, de Max Ernst. Penduram-no nos pregos, logo escondidos, mas há mais: de repente, chegam paisagens de Monet, Van Gogh, Hodler, a compor uma linha de horizonte disposta entre campos de trigo e montanhas. “Imagina os custos do seguro”, ouve-se.

Há quem vá atrás do carrinho gravando com o telemóvel, há quem fique parado em frente de tamanha maravilha, meditabundo: será que acabei mesmo de ver a montagem de uma das obras mais icónicas da história da arte?

Dois minutos depois, Paul Klee, Piet Mondrian, Kazimir Malevich e Pablo Picasso são retirados de uma parede, deixando os pregos nus. Voltam Marlene Dumas, Andy Warhol, Joseph Beuys, compondo mais uma fila de analogias. Veio-me à memória um antigo trabalho da fotógrafa americana Zoe Leonard, refletindo sobre os encontros entre as imagens, mas ela não está incluída neste grupo.

Publico uma story no Instagram.

As obras rodam, parece uma valsa; criam e recriam espaços para refletirmos sobre semelhanças e inspirações; simultaneamente, do lado de fora da janela, no jardim, uma névoa espessa envolve a bilheteira, o prédio, dilui a luz na sala: Fujiko Nakaya, um artista japonês com quase 90 anos, criou Untitled seguindo os arquétipos de uma obra movediça, efémera e, à maneira contemporânea, fixando-a quer como fenómeno, quer como artefacto.

Após ter ficado muito tempo a assistir às transformações das primeiras salas, posso adiantar que Francis Bacon e Rudolf Stingel se encarando com as mulheres secas de Alberto Giacometti é exagerado.

Mais uma story.

Prossigo, mas não consigo: os diálogos a envolver obras de Gerhard Richter, Louise Bourgeois, Pawel Althamer, Constantin Brancusi, Thomas Schütte, Jeff Koons e Jean Tinguely travam-me, transtornam-me, por tamanha beleza reunida.

A magia acaba com uma mensagem no ecrã do telefone, em reação à story: “Hans Haacke fez uma exposição igual em 1996, no Boijmans, em Roterdão. A memória é cada vez mais curta. Aproveite”.

Olho à minha volta, enquanto toda a gente tira fotos, silencioso, boquiaberto, surpreendido; enquanto atravesso The End of Imagination, de Adrián Villar Rojas, pensando na perfeição desse título a implicar com a minha ignorância, abro o Google: “Em Viewing Matters, Hans Haacke foi convidado não a mostrar as suas próprias obras, mas a reexpor seleções da coleção permanente do museu. A justaposição de antigos mestres e obras modernas e contemporâneas é apenas um dos truques de Haacke para fazer com que o espectador olhe para essas obras sob uma nova luz”.

Metodologia de “cadáver esquisito”, no ano em que o Movimento Surrealista completa cem anos de vida: será que Yaldabaoth (sim, é mais um nome que virá) poderia ser considerado uma homenagem não declarada ao movimento que misturou ecleticamente a vida real com o seu lado mais profundo?

Mais uma hipótese: será que estamos perante a enésima “exposição parque de diversões”, efeito procurado pela sociedade ocidental inteira, como comentaram comigo dois galeristas presunçosos, em defesa da Bienal de Veneza 2024, por eu achá-la uma pesquisa fria e fora do tempo?

Ora, teremos de sentir um sentimento de pecado quando as exposições, embora contenham pedaços de história da arte, não se mostrem aborrecidas ou pedantes? Absolvemo-nos, principalmente quando a fluidez da época atual encontra os prodígios da cultura de ontem e os leva de encontro à teoria de Antoine-Laurent de Lavoisier: “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

Poderia ser mais um título portentoso para o Summer Show, mas por enquanto não.

THE LATENESS OF THE HOUR está patente até 11 de agosto de 2024 na Fundação Beyeler, Basileia.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

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