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Cuidar e descongelar discursos

Aquela que era para ser uma breve chamada telefónica acerca da sua segunda exposição individual na NO·NO Gallery transformou-se numa longa e significativa conversa, com diversas camadas e direcções, ou não se tratasse da artista Ana Pérez-Quiroga. Discutiu-se o mercado e o estado das coisas, mas também questões relativas à fragilidade, direitos, linguagem, sexismo e a urgente necessidade em desconstruir discursos limitadores. Tudo isto está, de forma mais ou menos directa, presente no seu trabalho de investigação e produção.

A artista, que nos tem habituado à investigação em torno do mapeamento do quotidiano, aqui apresenta-nos uma espécie de atlas de afectos. Uma estrutura labiríntica de emoções, pensamentos e alusões pessoais, que percorremos dentro de uma atmosfera aquática, azul, profunda, densa e ao mesmo tempo leve, que nos permite sentir a significativa combinação entre encontro, duplicidade e descoberta.

Mas comecemos pelo princípio, e por onde começou a nossa conversa: o amor. Tema central da exposição, é este sentimento que dá o mote para a proposta da artista, de uma nova visão feminista baseada em formas de afecto assentes na equidade e liberdade.

Ana Pérez-Quiroga, lésbica, activista, queer, constrói Estonteante – título da exposição – a partir da sua visão, de uma perspectiva que nasce, naturalmente, do seu universo. É evidente a vertente autobiográfica no trabalho construído ao longo dos anos, revelando sempre um posicionamento e uma visão profundamente pessoal, fruto de uma inquietude e compromisso de trabalho de autodesenvolvimento. Nesta mostra, a partir da sua investigação teórico-prática, explora o conceito de relacionamentos e amor, mas, esclarece-nos desde logo, não um amor romântico. Interessa-lhe antes o sentimental, aquele que é desprovido da carga emprestada ao conceito pelas narrativas que se perpetuaram ao longo dos séculos por autoridades que querem definir e criar modelos de relações baseados num amor ditado pelos homens. “Na cultura popular, o amor é sempre da ordem da fantasia. Talvez seja por isso que os homens tenham produzido a maioria das teorias acerca do amor. (…) A fantasia masculina é vista como algo capaz de criar realidade, enquanto a fantasia feminina é tratada como puro escapismo. (…) Quando os homens se apropriam do género das narrativas românticas, as suas obras são muito mais reconhecidas que a das mulheres”[1].

Há um claro revisitamento ao passado e à memória – colectiva e individual – em que a artista questiona o posicionamento da mulher nas últimas décadas, o lugar que ocupa em relacionamentos e uma manifesta vontade em arrancar as raízes que se estenderam, limitadas, na esfera do sensível, impossibilitando um discurso intelectualizado e novas formulações onde a mulher se posiciona enquanto criadora e agente activa na erradicação de narrativas heteronormativas e estereotipadas. “As elaborações visionárias das mulheres sobre o assunto ainda precisam de ser levadas tão a sério quanto os pensamentos e os escritos dos homens. Ainda que eles teorizem sobre o amor, são as mulheres que o praticam com mais frequência”[2]. Através disso, aborda, de forma poética e intuitiva, a problemática de género e torna clara a ambição em estabelecer um novo lugar centrado na perspectiva feminista.

Ao longo da nossa conversa ficou claro que Estonteante é, também, sobre cuidado. Um cuidado que é manifestado seja através de objectos que foram retirados dos seus lugares de origem, re-colocados em contexto artístico, e que Pérez-Quiroga rega cuidadosamente no seu ateliê (5 pedras #1 + Natura #8, 2023) seja através da inevitável constatação de que quase todas obras presentes na exposição têm um par, uma espécie de complemento, de extensão de si mesmas, aludindo ao cuidado nas relações entre as duas partes. Susan Sontag debatia frequentemente a procura pela identidade e autenticidade dentro dos relacionamentos, sugerindo que o outro pode ser um espelho através do qual as pessoas descobrem e confrontam as suas próprias identidades – exercício que pode ser tanto libertador quanto sofrido. Aqui, Ana Pérez-Quiroga explica-nos como estão ligadas entre si – i.e. peça, caixa da peça, fotografia da peça (You are here to risk your heart, 2024; You are her and she is you, 2024; Magical presence, 2024) – e como, à semelhança do que se pretende nos relacionamentos, elas vivem por si só. São únicas e individuais, apesar de espelhadas: “interessa-me a ideia do espelhar, de como nos espelhamos uns nos outros enquanto estamos em relações, como somos complemento, mas como devemos também manter a nossa individualidade”[3].

Também a ideia de trabalho performático, de significativo interesse para Ana Pérez-Quiroga, está profundamente integrada e manifestamente presente na exposição: “gosto do esforço de produção, da experiência sensorial, da performance, o que não é repetível”[4]. A utilização da performance enquanto expressão artística é aqui realizada de maneiras diversas e inovadoras. Através da obra It is a lovely way, escultura para fazer bolas de sabão onde é explícita a raíz lúdica da potência transformadora do amor[5]; da obra Las que son como yo!, formada por balões que se enchem de ar, simbolizando a ideia de dar voz e consciência; e, especialmente, através da obra You are here to risk your heart e You are her and she is you, composta inicialmente por dois blocos de gelo que, durante a inauguração, derretem, revelando no seu interior um coração e uma maçã cortada ao meio que aludem simbolicamente às vulvas, a artista convida a uma experiência sensorial e reflexiva sobre questões de género, sobre paradigmas e o descongelar de discursos masculinos, glorificando o amor, celebrando-o, “um hino à vida e ao amor em si”[6].

Esta mostra constitui, por isso, “um universo sensível, privado e generoso”[7], um labirinto formado por tecidos que são céu e mar com palavras onde coexistem múltiplas dimensões, estreitamente relacionadas com experiência e memória. Testa os limites dos discursos dominantes, evidenciando o posicionamento crítico que caracteriza o seu trabalho. Espelha a exploração e questionamento de identidade, levantando questões fundamentais como: a quem pertencemos? Onde nos posicionamos e em que comunidade nos inserimos? Quem somos e qual o nosso papel nos nossos relacionamentos? Há uma vontade explícita em comunicar com aqueles que compartilham a mesma visão. Na impossibilidade de alcançar todos, Ana Pérez-Quiroga procura tocar profundamente aqueles que pensam como ela e colocar-nos mais perto de uma sociedade mais justa – através de uma venda para dormir bordada com a palavra “Utopia”, relembra-nos que, quando dormimos, sonhamos, e quando sonhamos, não discriminamos, não julgamos. Estonteante é um manifesto que proclama uma reorganização de papéis, crucial para a expansão do entendimento do amor na contemporaneidade[8].

As suas criações, fundamentadas em princípios éticos (“como é que se pode amar se não amamos e cuidamos também do planeta em que vivemos?”[9]) e que homenageiam musas-artistas (11 gifts of, 2024), recordam-me o poema-manifesto de Mel Duarte, e com o qual termino este texto:

“(…) que a nossa dança ressoe em corpos presos por
[pré-conceitos,
que a nossa palavra atravesse barreiras e no peito cause
[efeito
que o nosso som extravase e chegue aos ouvidos mais
[primitivos
que a nossa imagem sobreponha tudo o que antes foi
[aprendido
E que, de uma vez por todas, reconheçam nossas artes com valor merecido.”[10]

A exposição pode ser visitada na NO·NO Gallery até dia 7 de Setembro.

 

Nota: a autora não escreve ao abrigo do AO.

[1] HOOKS, Bell. (2023). Tudo sobre o amor, Novas perspectivas, tradução Stephanie Borges. Orfeu Negro, p. 23.
[2] Id. Ibid, p. 20.
[3] Ana Pérez-Quiroga relativamente à exposição.
[4] Idem.
[5] Carolina Quintela na folha de sala que acompanha a exposição.
[6] Ana Pérez-Quiroga relativamente à exposição.
[7] Folha de sala.
[8] Folha de sala.
[9] A artista sobre o seu trabalho e a preocupação em produzir de forma cada vez mais consciente e ética.
[10] DUARTE, Mel. Excerto do poema “Deslocamento – poema manifesto”. In: Heloisa Buarque de Hollanda (org.). (2021). As 29 Poetas Hoje. 1º reimpressão, Companhia das Letras, p. 145.

Maria Inês Augusto, 33 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) como estagiária na área dos Serviços Educativos e trabalhou durante 9 anos no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada e actualmente desenvolve um projecto de curadoria de exposições de artistas emergentes. Tem vindo a produzir diferentes tipos de textos, desde publicação de catálogos, textos de exposições a folhas de sala. Colaborou recentemente com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas 2023.

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