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Pode o subalterno ser representado?: Panmela Castro na Galeria Francisco Fino

Do Jardim, um Oceano é o resultado da mais recente residência artística de Panmela Castro em Lisboa. A convite da Galeria Francisco Fino, a artista visual brasileira esteve, durante dois meses, a conduzir uma série de encontros no seu ateliê, capturados, individualmente, num conjunto de 16 peças inéditas. Tratam-se, com efeito, de grandes retratos: imagens que refletem parte da rede de afetos que Panmela foi tecendo a partir da sua viagem a Portugal, mas com muitos lugares, culturas e histórias distintas. Curada por Igor Simões, a sua exposição monográfica sente-se, em certa medida, quase como uma mostra coletiva – pela proximidade das figuras que reconhecemos em tela (e por entre as ruas de pedra portuguesa, como as chamamos no Brasil), mas, sobretudo, pela presença calorosa que carregam as existências ali representadas. No jardim de Panmela, são elas que tomam as rédeas das pinturas.

Esta espécie de soberania subjetiva resguardada em cada imagem é, justamente, o cerne do seu trabalho com retratos, prática que a artista carioca vem desenvolvendo pelo menos desde 2019. É certo que a autoralidade de Panmela se faz sempre evidente. Repetem-se em Do Jardim, um Oceano algumas das suas marcas distintivas – as influências do muralismo, os traços que se desmancham e escorrem como corpos em lágrimas, o expressionismo das pinceladas e cores –, mas há algo de irreproduzível em cada novo rosto que se oferece à vista da artista e do público. Já na exposição Retratos Relatos (2021, Museu da República, Rio de Janeiro), com curadoria de Keyna Eleison – mostra que firmou a vocação de Panmela como retratista –, as imagens parecem servir a um propósito maior: o de contar as peles e os sulcos de biografias que, como tais, só podem ser únicas.

Ainda assim, o ato de eternizá-las em tinta é, também, uma forma de torná-las símbolo – emblemas para as lutas transfeministas e antirracistas, nas quais Panmela é voz ativa. Em 2010, a artista fundou a Rede Nami, visando o fim da violência contra as mulheres e o estímulo ao seu protagonismo nas artes, um trabalho ativista que já lhe valeu a distinção norte-americana Vital Voices Global Leadership Awards. Os seus retratos operam, portanto, no limiar entre a pessoalidade radical e a construção de uma nova iconografia coletiva, preferindo levar o olhar às amizades ou colegas do meio, que, ao seu lado e no seu quotidiano, inspiram e fazem a diferença.

Fundamental é perceber, portanto, que a representação é um problema central na prática de Panmela. Não teríamos de ir muito longe, é claro: logo à entrada da mostra na Francisco Fino, um autorretrato da artista convida-nos a ler as peças ali expostas sob o eco das palavras de Gayatri Chakravorty Spivak em Pode O Subalterno Falar? (ou, ainda, Pode A Subalterna Tomar a Palavra?, título da edição portuguesa, cujas escolhas semânticas parecem-me cirúrgicas). “Entre o patriarcado e o imperialismo, a figura da mulher desaparece, não apenas num puro nada, mas num violento vaivém que é a figuração da ‘mulher do Terceiro Mundo’”, escreve a autora indiana, em trecho destacado pela própria epígrafe na sinopse do livro. Por um lado, então, falamos de representatividade: onde estão os corpos subalternos e as suas imagens? Em quais ruas, paredes, salas de exibição – e, por extensão, todos os espaços públicos onde a vida e a história são escritas – os podemos encontrar? Por outro, falamos da ação de re-presentar: de que maneira outras narrativas e abstrações podem ser construídas e apresentadas? E pelas mãos de quem?

As perguntas não são exatamente novas, sabemos. Mesmo assim, seguem relevantes num momento onde ainda urge discutir os nossos modos de ver, nomear, lembrar e mesmo musealizar. A um só tempo, os retratos de Panmela conversam com a memória da cidade e da história da arte, revertendo o “olhar imperial” português que, encoberto pelos imaginários colonialistas entre as costas africanas e brasileiras (os de ontem e os que persistem hoje), cataloga e descreve para explorar e vigiar – sejam as terras, as culturas ou as populações negras de ambas as bordas do Atlântico. Nesse sentido, é particularmente bonita a alusão ao jardim – fundo das suas imagens e ponto de partida para a conexão com o mar –, esse espaço de sobrevivência verde, que abriga um fragmento de tropicalidade possível, onde espécies nativas e migrantes coexistem e cruzam-se, indistintas. Nesse ambiente também limiar, algo entre a memória de uma natureza original e a sua viabilidade nos contextos ocidentais contemporâneos, Panmela logra transmutar a experiência do entre-lugar – fronteira intransponível, na qual a pessoa “subalterna” ver-se-ia despojada de pertença ou agência – num campo de forças, tão mais resistente quanto plural, tão mais vasto quanto próximo.

Assim, na Galeria Francisco Fino, tomam a palavra e a imagem Dennis Correia, Yen Sung, Anastácia Costa, Deolinda Cardoso Costa, Alexandre Santos (Xando), Telmo Galeano (Tekilla), Kemberling Martinez, Pati Nakamura, Amina Bawa, Namalimba Coelho, Oseias Baltazar, Felicia Hunter, Juca da Cruz, Lola Bahjan e Panmela Castro – parte desta teia que se foi (e se vai) formando por entre ruas, jardins, oceanos e gerações.

A exposição está patente até 14 de setembro de 2024.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

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