Insomnia, de José Luís Neto e utentes do Centro de Apoio Social de Pisão
“Decifra-me, ou te devoro”.
Na noite do dia 17 de maio de 2024, envolto pelas pedras do antigo criptopórtico romano de Aeminium (50 d.C.), em Coimbra, não foi difícil perceber um pouco da esfinge que ameaçou Édipo, na peça teatral de Sófocles (427 a.C.), encarnada em esculturas como o Retrato de Trajano (100 d.C.) e o Retrato Vespasiano (69-70 d.C.) – todas pertencentes ao acervo do Museu Nacional Machado de Castro.
Ao serem introduzidas no ambiente expositivo proposto, essas obras romanas, feitas em mármore, encaram esculturas menores, oriundas da plasticidade da terracota. Estas, apesar de lembrarem Édipo, traziam consigo muito mais metáforas e pensamentos da teoria psicanalítica do que o personagem da tragédia grega poderia sugerir.
Os objetos são autorretratos esculpidos pelos utentes do Centro de Apoio Social de Pisão, instituição que acolhe, em regime de internamento, adultos com patologia psiquiátrica.
Foram mais de 1500 autorretratos feitos para a exposição, sendo que sua grande maioria foram expostos em um grande suporte em madeira: tábuas juntas, mas que não sugeriam solidez. Algo que poderia lembrar a Jangada da Medusa, de Théodore Géricault (1818) – e, assim, a exposição, que já se apresentava com ares de autodescoberta diante da evocação da imagem da esfinge – “decifra-me ou te devoro” –, também ganha uma arriscada atmosfera de resgate.
Com quantos pesadelos se faz uma insônia?
O cenário narrado contextualiza a exposição Insomnia, de José Luís Neto (Satão, 1966) junto aos utentes de Pisão, com curadoria do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. Ela esteve inserida na programação convergente da Bienal de Coimbra, AnoZero, 2024.
Nela, o artista – que possui uma participação consistente no circuito artístico português e internacional, sempre a estabelecer a fotografia como o núcleo de toda a arte que orbita sua obra – apresenta o desdobramento de sua investigação a partir dos portfólios 22474 e 22475: fotografias de 1913, clicadas pelo fotógrafo Joshua Benoliel, durante a cerimônia de abolição do uso de capuz no sistema prisional português.
O uso do capuz em penitenciárias foi instaurado em Portugal em 1884, com o objetivo de evitar a identificação entre internos na prisão. Se por um lado Insomnia recebe de Pisão mais de mil autorretratos em terracota, por outro Neto expande sua investigação fotográfica e desmascara um pesadelo histórico.
Expande de forma simbólica, narrativa e, também, literal as imagens dos retratos, originalmente produzidas em tamanho mínimo e que, neste gesto artístico, são esticadas e alargadas. Caprichosamente impressas em painéis de linho: material similar ao dos capuzes utilizados pelas pessoas fotografadas por Benoliel.
Uma vez que a bienal AnoZero evoca a obra de Luis Bruñel, O Fantasma da Liberdade (1974), como base conceitual para o seu evento, lembramos que figuras do terror costumam não conseguir ver seu próprio reflexo no espelho –para um ser poder ver sua própria imagem refletida, é necessária uma vida que um fantasma ou vampiro não possui.
Mesmo as imagens em terracota, que dialogam com os painéis de José Luís Neto, também chamam a atenção pela simbologia de carência de vida. Ao experimentarmos uma visão original do Velho Testamento, cremos que é do boneco de barro que surge a gênesis humana: se “o duplo” exposto se apresenta em barro, logo é desprovido do sopro divino?
E se evocarmos a crença de religiões espíritas, é possível perceber que um ser vivo possui sua alma encarnada em seu corpo durante seu tempo de vida, porém durante o sono o seu espírito liberta-se para circular em outros planos. Diante de uma premissa espírita, a Insomnia também pode representar um tipo de prisão da alma em vida.
Notas do subterrâneo
No evento de inauguração de Insomnia, no passado dia 17 de maio, o público circulou em um ambiente em que geralmente possui pouca circulação: o criptopórtico romano conimbricense.
Ali, características do local, que poderiam ser um problema, acabaram por funcionar bem: a má fluidez dos visitantes pelo evento, devido ao seu grande número, contribuiu para uma ideia “claustrofóbica” sugerida pela narrativa do gesto curatorial apresentado. A ideia de reflexos de imagens, encaradas e a quantidade de objetos em terracota, de alguma forma, reverberaram com toda essa pequena multidão que fez do Museu Nacional Machado de Castro algo parecido com um formigueiro.
Neste cenário, também apareceu um problema recorrente, e muitas vezes negligenciado, em quase toda a realidade expositiva ibérica: o da acessibilidade. Assunto que carece de um debate amplo em toda a comunidade artística e é intimamente ligado com qualquer investigação que envolve o debate sobre direito de circulação de corpos.
No momento em que o público entrou no espaço expositivo, que é algo como um “cubo rochoso” com as criações de José Luís Neto e dos utentes de Pisão, ele experienciou algo extremamente imersivo. Um gesto artístico que proporciona grande atenção e nenhum estímulo do mundo exterior. A iluminação da exposição propõe ainda mais máscaras aos retratos, estas forjadas com sombras, para aumentar o número de camadas da exposição, que apesar de possuir um clima intimista, mantém ao longo de todo o seu trajeto uma tensão, um suspense que desafia até mesmo os mais corajosos a terem coragem de dormir naquele local: Insomnia.
No momento final do vernissage, ocorreu uma performance do artista sonoro Fernando Fadigas (Oeiras, 1968), que coletou sons de rochas e metais das profundezas de Aeminium e esculpiu com laser uma das imagens dos painéis de José Luís Neto em um disco de vinil que o auxiliou a criar uma produção sonora em sua pick up. O som de Fadigas a ecoar pelas paredes do criptopórtico fez com que, por alguns minutos, todos os elementos expostos parecessem ter vida própria e, com certeza, isso não foi um sonho. Era impossível dormir.