O que é, afinal, um oxímoro?
A Alfaia – Associação Cultural prossegue o intento de traçar uma cartografia dinâmica da região onde se localiza, com perspetivas que veem esse contexto (histórico, cultural, geográfico, …) de modo complementar desde dentro e a partir de fora. O objetivo afirma-se como um centrar-se mais na ideia dinâmica de construção de imagens do que na de um mapa estático: através de chamadas abertas e residências artísticas, desafios lançados a artistas de proveniências diversificadas e de gerações igualmente desiguais, propõe-se a exploração de trajetórias em mutação. É uma atitude arriscada; mas tem, por isso mesmo, originado muitas surpresas. A exposição Mar Deserto – Oxímoros para uma ausência constitui uma dessas arrebatadoras e surpreendentes consequências.
O efeito surpresa começa por ser sugerido pela indeterminação: as duas palavras iniciais do título tanto podem ser lidas enquanto sucessão de dois nomes (em que a elisão de elemento articulatório entre ambos abre, mais do que encerra, a leitura), “mar” e “deserto”; como enquanto sintagma nominal em que o nome está adjetivado (um “mar” que se encontra ou se define enquanto “deserto”, por sinonímia com “vazio” ou antinomia com “habitado” ou “cheio”. O que oferecerá uma exposição que assim (não) fixa o seu próprio título?
A indeterminação é um modo de instabilidade. Desde que a visitante entra na galeria, cujo espaço lhe é familiar, encontra-a alterada: o chão que se pisa não é a habitual lisura do betão nivelado: substitui-o a expetativa de um andar instável sobre um solo irregular; cobrem-no – na inesperada totalidade – ondas de terra e areia, em diferentes gradações de memória geológica, mais clara na entrada, a escurecer para o interior. Em vez de água do mar, são grãos de terra o forro dos passos: a água ausente afirma-se, portanto, em mais um dos oxímoros percetíveis. Mas foi no mar, diz o programador Miguel Cheta, que se experimentou a praticabilidade do imponente artefacto que ocupa o lugar central da exposição. É uma gaivota-arado, um meio de diversão, locomoção ou lavoura, construído com elementos de madeira (troncos, placas, pequenas cavilhas), de cortiça e de peças metálicas, usadas sobretudo para a articulação e direção deste “carro” a que João Mouro (n. 1985) chamou Cortição. É desta peça que se expande outro oxímoro (a definição de um termo ou de um objeto através da sua intrínseca constituição daquilo que seria, que é, o seu próprio contrário): a embarcação ou carro de terra compõe-se de material de árvores, de natureza essencialmente vertical – mas a sua função, por mais indeterminada, opera sobre elementos horizontais, como a água e a terra. (A linha de um horizonte não fecha o plano, enfim, e tudo pode ser mergulhado, ou perfurado.) As duas boias (Boia Megafone e Boia dos Ventos), imponentes esculturas que completam o trio de João Mouro e partilham com o Cortição materiais e estilo, interpõem-se entre ele e quem visita, fazendo gerar interferências que o povoam – o carro está sobre um terreno deserto, mas o terreno, afinal, habita-se de outros artefactos.
Mar Deserto atua na variabilidade de dimensões. Por um lado, inclui peças sobredimensionadas, como as três de Mouro (é a sua deslocação espacial e funcional que as agiganta, mas o sentido que fazem na exposição passa por esse desvio); por outro, apresenta elementos que quase passam despercebidos, na pequenez ou na subtileza com que se articulam com as vagas de terra e areia – é o caso das Alfarrobas Caiadas de Filipa Tojal (n. 1993), cuja passagem pela Universidade de Artes de Tóquio parece revelar-se na atenção ao mínimo, ao efémero, e abraçar como objetos estéticos os instrumentos da sua fabricação: são, aliás, a peça nº 1 da exposição os pincéis que construiu a partir de folhas de palma e esparto, e com os quais veio a criar um conjunto de delicados desenhos – ou melhor, testemunhos da relação que a sua mão estabeleceu com os pigmentos da terra, a cal, acrílico e o papel que lhes serve agora de suporte. Os pigmentos são de cal e terra, mas os tons que deles resultam são predominantemente verdes: um outro oxímoro? A cor de terra contém em si a cor do que dela surge, ou daquilo que dela emana (como o mar ou um lago, que já tivessem tido lugar onde hoje se ergue a Serra do Caldeirão).
Habituada a expressar-se através de fotografias ou filmes (o seu O Jardim em Movimento, 2024, integrou a mais recente edição da Quinzena dos Realizadores, em Cannes), Inês Lima (n. 1993) escreve (à mão e à máquina, como que a acentuar a indelebilidade, o definitivo da afirmação): “Ñ ME APETECE FAZER UM FILME” / “Não me apetece nada fazer um filme.” Optou, pois, por um caderno de folhas cosidas à mão, onde desenha um diário de bordo do processo artístico. Ao lado do caderno, que se pode manusear livremente, os auscultadores áudio permitem escutar algumas das passagens inscritas nas páginas (até ouvir a artista a cantarolar uma canção). Ali se registam camadas elementares da criação, que se percebem desde as hesitações iniciais, e a pesquisa (“Fui ao Priberam ver o que significa o x í m o r o”), até uma ligação aparentemente aleatória com uma canção pop. As derivações do conceito ocultam e revelam a presença da artista no ato da criação; o Algarve, pressuposto e condição, surge e desaparece, sempre presente no modo como o pensamento, intermitentemente, dele se ausenta.
É Jorge Graça (n. 1978) quem assume a expressão fotográfica. Nas suas fotografias, o oxímoro expositivo encontra outro modo de enunciação. Distinguem-se das restantes peças, desde logo, pela harmonização do formato e pela opção do preto e branco, quando o resto da sala se apresenta em cor. Mas é no que cada fotografia mostra – e naquilo que em cada uma delas a visitante vê – que se entende como são compostas de oposições: a perceção inicial sugere formas animais; a aproximação revela líquenes, fosseis, sementes, de novo a ampliação do que, fora da imagem fotográfica, seria minúsculo. O território, conceito alargado, é delineado nos pormenores e nas formas de atenção que se lhes dedica.
Nesta exposição, a folha de sala funciona ainda como peça integrante: é nela que, além de se identificar o título, autoria e ano de produção, os materiais e dimensões das peças, se inscrevem coordenadas geográficas e altimétricas que remetem para locais relacionados com as obras mostradas. (Para o conjunto de três peças de João Mouro, por exemplo, a remissão pode ser a lugares de onde se recolheu a madeira, a cortiça e as cabaças utilizadas.) Os versos de um poema de Gastão Cruz, citados no final da mesma folha, enviam, por sua vez, a uma paisagem que encarna a “natureza” de que o poeta fala, quando se lê que “a natureza já / não sendo o templo de pilares vivos / mas o templo do tempo em que entre o / vivo o que viveu e o que viverá / só lembramos a breve ondulação / de marés e raízes”. (É propositadamente que deixo por identificar os lugares; para que quem visita possa experimentar o espanto.)
A proposta deste cruzamento de informação alcança mais do que uma releitura das obras, ou de um convite à interação com o visitante: consiste numa igualmente surpreendente e muito bem-vinda comparência da curadora, Leonor Lloret (n. 1981), comparência ausente, porém ativa e tão visível quanto são materiais e presentificadas as obras mostradas na galeria da Alfaia.
Tudo se presentifica nesta exposição de onde o que se vê é também o que está ausente – sobretudo a areia/terra, substrato de todas as peças, chão comum que prende o visitante ao lugar, transporta-o para fora da galeria através do estar dentro dela; faz reviver uma paisagem na reflexão que esta, através do processo artístico, induz; fá-la, afinal, existir.
MAR DESERTO – Oxímoros para uma ausência pode ser visitada na Galeria Alfaia, em Loulé, até 31 de agosto de 2024. A galeria está aberta às quintas e sextas-feiras, das 14h30 às 18h, e aos sábados das 10h30 às 13h30 e 14h30 às 18h. Parceria: Galerias Municipais de Loulé e Município de Loulé.