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Esboço para um museu: 2, Nástio Mosquito

Esboço para um museu é um ciclo de entrevistas que propõe amplificar a crescente referência a questões coloniais e pós-coloniais na cena artística em Portugal ao longo dos últimos anos. O objetivo principal passa por fomentar o diálogo entre uma série de práticas e iniciativas artísticas que têm vindo a reclamar um espaço adequado a essa discussão, assim sublinhando um vazio institucional a nível cultural e artístico. Nesta segunda entrevista, Guilherme Vilhena Martins conversa com o artista multidisciplinar Nástio Mosquito.

GVM: Para além do teu à-vontade a utilizar meios de expressão diferentes como a música, o vídeo, a performance ou a fotografia, diria que um dos elementos centrais do teu trabalho é a ambiguidade. Penso por exemplo em 3 Continents (Europa, America, Africa) (2010), uma vídeo-instalação onde anuncias a compra desses três continentes, ou em Respectable thief (2016), onde estabeleces uma relação entre a ideia de apropriação e os processos de construção de identidade e de poder. Em ambos os casos, a tua posição parece mais problematizante do que conclusiva. Queres falar um pouco sobre essa estratégia?

NM: Não sei se é tanto estratégia ou condição… Uma coisa não nego, gosto que as pessoas ao encontrarem o meu trabalho não encontrem mais uma perspetiva com a qual tenham o privilégio de concordar ou discordar com o que estão a testemunhar. O meu compromisso é com o potencial que existe em experienciar algo que convide a considerar como nos relacionamos com a capacidade, disponibilidade e consciência que envolvem uma tomada de decisão. A outra coisa é que o meu trabalho não é nem terapia, nem prova de inteligência… Não estou preocupado em ser compreendido, mas em propor a possibilidade de um viver mais intencional… Faz sentido?

GVM: Todo o sentido. Lembro-me aliás de ouvir uma entrevista tua a propósito da performance O Que Minha Avó Me Deu, que fizeste no MAAT em 2019, onde falavas da “celebração da contradição”. Também já te ouvi dizer noutras ocasiões (entrevista TATE, 2012) que só criando desconforto é possível vislumbrar uma nova perspectiva. Como funciona essa dinâmica numa performance? É uma questão de narrativa?

NM: Não sei, possivelmente uma questão de intenção, intenções… Seja de narrativas, símbolos, ou estímulos cognitivos. Muitas das coisas que fiz – aquando dessas entrevistas que referencias – o meu corpo, e tudo o que isso envolve, era o meu veículo principal. Quando assim o é, tem de haver exploração de uma verdade para lá do racional … Tem de estar a ser explorada uma “verdade interior”. As “verdades interiores” quando partilhadas têm tendência em carregar energia transmissível… para, o dito, bem ou mal.

GVM: Parece-me uma ideia interessante para pensar no Kizomba Design Museum (KDM), um projeto que iniciaste recentemente com o Kalaf Epalanga e que teve já uma versão itinerante durante a 35.ª Bienal de São Paulo. Consideras o KDM um projeto artístico? Como se chega à ideia de começar a construir um museu?

NM: Com convicções atrevidas, e fundações fundamentadas num viver geracional? Essa é uma pergunta saudável para o mano Epalanga…

GVM: (Risos) Sim, acho que faria todo o sentido numa próxima entrevista. Mas falando nesse elemento de partilha e transmissão de que falaste ainda agora… Um dos objetivos do KDM passa por “fomentar o diálogo público e destacar a influência que essa cultura exerce sobre várias comunidades no mundo”. O que pode ser um museu enquanto plataforma crítica, de discussão, mais do que lugar de conservação?

NM: Plataforma crítica de discussão… soa bem. Me parece mais uma confusão de significados, utilidades e autoridades de nossas construções sociopolíticas. Plataforma crítica de discussão deve ser cada núcleo familiar, cada grupo de amigos, cada sala de aula, cada orgia relacional voluntária… e mesmo assim, muito de quando em vez. O Museu é um espaço onde se poderá ter a possibilidade de celebrar – no tempo e no espaço – humanidade na suas mais diversas vertentes de expressão física. Significados são coisas voláteis, e como tudo que é volátil deve ser conduzido como tal. O KDM quer arquivar, mostrar, celebrar, propor experiências e edificar capacidades de uma cultura plural. Temos objetivos e desejos do espírito e da carne, que passam sempre pela agregação de valor sensorial, espiritual e económico.

GVM: O Kalaf já falou da possibilidade de materializar o Museu num espaço nos subúrbios de Lisboa. Seria importante ter o KDM em Lisboa? Quais são as perspectivas de futuro?

NM: Mais significativo do que Lisboa é sem dúvida Luanda – tomássemos nós decisões emocionais e, neste caso, simultaneamente dolorosamente visionárias – e S. Paulo se estivermos focados em sustentabilidade e hábitos de consumo cultural. Eu e o Kalaf temos posições complementares em relação ao território português. Uma coisa que sinto estarmos de acordo é o facto de Lisboa não precisar de ser introduzida, explicada, ou exposta à cultura da KIZOMBA. Os lisboetas sabem e sentem KIZOMBA diariamente… Se seria importante ter o KDM em Lisboa? Se nós, Lisboetas, tivermos juízo, é celebração inevitável. Deixa que te fale das perspetivas do presente, que o futuro é poder que me escapa… O presente é esta “conversa”, e a responsabilidade coletiva que partilhamos “os três” neste preciso momento; UMBIGO, eu, e você que nos lê. No presente precisamos da disponibilidade e capacidade para edificarmos as estruturas que tanto achamos merecer. Legitimem, programem, toquem alto. Dancem, celebrem, enraiveçam o silêncio do medo e do isolamento, lembrem e oficializem o caminho que existe do gindungo ao piripiri.

GVM: De facto, deveria ser uma celebração inevitável. Na tua ótica, o que é que tem vindo a adiar essa inevitabilidade? Porque é que esse gesto de justiça e cuidado tarda em ser feito?

NM: Não sei… Creio que alguém na tua posição tem vista privilegiada para nos ajudar a estabelecer convites que extingam as insuficiências com que estamos todos confrontados. O que tu achas que faz tardar esse cuidar?

GVM: É certamente uma questão de juízo, como dizes, porque o juízo envolve muita coisa… Eu concordo contigo, acho que Lisboa não precisa de ser introduzida, explicada ou exposta à cultura da KIZOMBA. Acho também que, como dizes, é preciso extinguir essas insuficiências a nível estrutural ou institucional, porque quando falamos de vazio institucional falamos do privilégio de determinadas histórias – porque existem instituições – em detrimento de outras. Isso faz-me pensar noutra questão: qual é a importância do palco? O que muda contar O Que Minha Avó Me Deu num espaço institucional como o MAAT, por exemplo?

NM: Se percebo teu ponto de vista, poderá ser continuamente urgente renovar pluralidade dos recursos humanos em estruturas nacionais? Isso, a favor de novos possíveis pontos de partida, decisões e condições narrativas? Não sei bem como responder à tua pergunta. O que muda… tudo sempre muda, mesmo apresentando O Que Minha Avó Me Deu duas vezes no mesmo lugar, só tenho “não respostas”… Deixa dizer-te o seguinte: gosto do potencial e atitude originária do MAAT. É um espaço que oferece condições de apresentar narrativas a públicos muito diversos. No meu caso isso não muda a integridade de meus conteúdos, oferece aos mesmos, teoricamente, a possibilidade de interagir com pessoas que não têm necessariamente indústrias criativas como foco do seu viver. Foi importante para mim fazer meu primeiro gesto “solo” em território português numa estrutura como o HANGAR, da colega Mónica de Miranda, por exemplo.

GVM: Isso mesmo. Precisamente estruturas como o HANGAR. Na primeira entrevista desta série, a Mónica dizia que o HANGAR sempre foi “um lugar de resistência, de criação e interseção entre várias áreas, mas principalmente as artes visuais, com a missão de unir várias geografias, de criar um espaço catalisador de experiências na conexão entre artistas, investigadores e outras iniciativas”. Foi isso que sentiste?

NM: Meus sentimentos são para celebrações de bar e para aqueles que tangivelmente escolhem aturar minhas indulgências. Eu respeito a Mónica. Eu respeito o trabalho que o HANGAR edifica. Eu não me sinto confuso sobre a construção que temos de nutrir, rumo ao encontro das comunidades que queremos construir… Só tenho de, e que, agradecer ao HANGAR pela parceria.

GVM: A propósito de palco, queria voltar a tocar na questão da ambiguidade para terminar. Dizias há pouco que gostas que as pessoas não encontrem mais uma perspetiva com a qual tenham o privilégio de concordar ou discordar quando se deparam com o teu trabalho. Parece-me que essa é uma ideia interessante para pensar um museu, que parece uma estrutura interessante para responder às questões em que tocámos. Como se negoceia ambiguidade num museu?

NM: A natureza de estruturas legitimadas por – e com – fundos públicos confere por vezes parâmetros um pouco confusos para mim… não creio que haja necessidade de se negociar ambiguidades. Tenho a convicção de que um museu, mantendo-se disciplinado à contemporaneidade do seu contexto cultural e fiel ao seu propósito, deve simplesmente ser um museu; como que um espelho tridimensional na qualidade temporal dos seus focos. A ambiguidade, as contradições e discriminações serão fatores inevitáveis, já que serão humanos no comando. Sinto que aquilo que devemos regularmente estar profundamente atentos – e adequadamente disponíveis para contribuir – é às competências e capacidades de nossas lideranças.

Guilherme Vilhena Martins (1996, Lisboa; vive em Berlim) é escritor e curador. É licenciado em Filosofia pela Universidade NOVA de Lisboa e atualmente está a terminar um mestrado em Filosofia na Freie Universität Berlin. O seu trabalho literário consiste em dois livros - 'Háptica' (douda correria, 2020), 'Voz/ Estudo de Som' (edição de autor, 2022) - e textos, crónicas e críticas escritas para diversos projetos editoriais em português e inglês, entre os quais a Umbigo ou a Frieze. Geriu e editou também 'Alcazar', um projeto literário interdisciplinar que reuniu escritores e artistas visuais em torno da ideia de uma escrita transdisciplinar coletiva. Além disso, curou várias exposições em Portugal e na Alemanha e é um dos co-fundadores do projeto EGEU, iniciado em 2019 em Lisboa. Tanto a nível literário como curatorial, Vilhena Martins procura utilizar a prática artística como ferramenta crítica e forma de discussão. Tematicamente, o seu trabalho foca-se nas noções de resíduo, preenchimento e desejo, bem como nas suas diferentes instâncias, nomeadamente o fenómeno do turismo.

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