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Caleidoscópio na CABANAmad

Quando entramos na exposição Caleidoscópio, o lugar é dominado por uma intensa luz, provinda das largas janelas, presentes na ampla sala de exposições CABANAmad. A forte luminosidade perpassa as peças multicolores e translúcidas, que se encontram afixadas sobre a parede. Pássaros longilíneos, de formas languidas, e caramelizadas, contrastam com as manchas, ou vestígios deixados sobre a parede, de exposições ocorridas anteriormente na galeria.

Os pássaros, em vidro soprado, ou Birds of Paradise, 2023, pertencem a Nienke Sikkema, artista holandesa, e sopradora de vidro. Próximo destas peças de Sikkema, encontramos, sobre o solo, uma instalação de Pedro Valdez Cardoso, composta por um conjunto de cadeiras de praia, dispostas em círculo, de tecido azul, e bordadas a tons de branco. Motivos vegetalistas pontuam o pano azul das cadeiras, transportando o visitante para paisagens bucólicas, e lugares mágicos, onde o tempo parece demorar a passar. O título da instalação é Slow, 2023.

A exposição divide-se em duas salas. Ainda na primeira, logo à entrada, podemos vislumbrar um tríptico, realizado por Diogo Nogueira: uma técnica mista em tela, com o título Está no Sangue, #1,#2,#3. As imagens sugerem corpos humanos em movimento sobre um fundo azul, no seio de um ambiente natural, povoado por árvores e animais selvagens. No encalce da pintura, em tríptico, dois pratos pintados pelo mesmo artista, Lavar pratos em família # 11, 2024, surgem a rodear um grupo de candeeiros Parrot, de Nienke Sikkema, em vidro soprado. A mesma artista apresenta duas versões de pássaros: os que servem para ser fruídos, como arte; e os outros, também no mesmo material vítreo, que servem funções geralmente atribuídas à disciplina do design, como objetos que têm a utilidade de iluminar um espaço. Vários papagaios, sinuosos e fluídos, erguem-se e revelam a sua propriedade translúcida e colorida. A luz do exterior cruza a do interior e formam um efeito líquido e ondulante, povoado de transparências.

Paesaggio Attrezato (2024), uma escultura em madeira, descobre-se assim que nos dirigimos para a segunda sala, esta mais recôndita. Peças em madeira, de vários tons, uns mais escuros, outros mais claros, cobrem uma prateleira, fixada sobre a parede. Pequenas maquetes de casas, árvores e pontes poisam sobre essa tábua. Uma cova na superfície sugere um lugar que pode ser usado para colocar as chaves, ou outros objetos, quando se chega a casa. Trata-se de uma prateleira de múltiplas funções. Ou nenhuma, se assim se desejar.

Matteo di Ciommo, autor de Paesaggio Attrezato, trabalha a madeira manualmente, construindo esculturas, de pequenas paisagens, onde também é manifesto um cortante jogo de luz e das suas sombras, em que só vemos par nas pinturas de Giorgio Chirico.

Na exposição Caleidoscópio, como um sistema aberto, há espaço e liberdade para multiplicar os sentidos do que vemos e os significados dos próprios objetos. Na segunda sala, outras peças, igualmente vibrantes e coloridas, emergem, captam, e desafiam a atenção do visitante. Miniaturas de potes e jarras surgem colocados sobre um plinto alto. As suas múltiplas cores e formas oferecem uma atenção redobrada. A sua variedade pede tempo de fruição e deleite. Estas peças sem título (2024), feitas em cerâmica, pertencem a Yuta Segawa, e foram pintadas à mão.

Depois, detemo-nos nos espelhos Grotti Portici III, IV, V (2024), do estúdio Et.Tv.BRvte.Stvdio; na tapeçaria Mapa (2015) de Valdez Cardoso; na peça colorida Peacock (2011), do mesmo autor; e no objeto virtuoso e helicoidal que se contorce, feito em grés e de cor rosa, do artista Roger Coll.

A exposição Caleidoscópio declina o olhar, e também o pensamento, para aquele preciso ponto onde é difícil posicionar o objeto, ou a obra de arte, numa determinada categoria. A exposição propõe exatamente isso, uma funcionalidade fluída “que desafia a definição de objecto de arte ou o produto de design”[1].

Os designers e artistas convidados estabeleceram um diálogo criativo, desafiando as fronteiras disciplinares[2]. Como é dito na exposição: “As obras expostas contam histórias de influências entrelaçadas, em que o design se alimenta da expressividade artística e a arte encontra novas formas através da funcionalidade”[3].

Era Vilém Flusser que dizia que o “mundo dos objectos, animados-inanimados, uteis ou inúteis, próximos ou longínquos, estava fadado a ter áreas cinzentas e apresentar lacunas”[4]. Todos os objetos contêm informações. Com a era da informação, o mundo material cada vez mais se torna nebuloso, fantasmagórico, espectral. Tudo progride para o fluxo das ideias, identidades e miscigenações.

A exposição parece incorporar essa era líquida, pós informação, das não coisas[5], como sugeria Flusser também. E até mesmo Bruno Munari, que apelava a uma arte para a vida, poderia descrever, exatamente, o que se experiencia nesta exposição: “uma produção de bens de utilidade espiritual”[6].

Caleidoscópio está patente na CABANAmad até 5 de setembro de 2024.

 

[1] Valdez Cardoso, Pedro. Folha de sala da exposição Caleidoscópio.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.
[4] Flússer, V. 1999. The Shape of Things, a philosophy of design. Reaktion Books, p. 85.
[5] Ibidem.
[6] Munari, Bruno, (2008) Design as Art. Penguin Books.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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